ENTREVISTA

“Precisamos ser mais modestos. Não estamos alimentando o mundo”, diz Marcos Jank

Marcos Jank, coordenador do Insper Agro Global, diz que o agronegócio começou a voltar à normalidade em 2023, após dois anos de preços altos

Do campo às revendas, a avaliação de que 2023 foi um ano atípico se repete País afora. Mas, para um dos maiores especialistas em agronegócio, o ano que termina marca um retorno à normalidade, movimento que deve ser intensificado em 2024.

“O período de 2020 a 2022 é que foi anormal”, diz o agrônomo Marcos Jank, coordenador do centro de estudos Insper Global Agro. Nesse intervalo, houve um desarranjo nas cadeias de suprimento globais que resultaram em uma alta histórica no preço das commodities. O Brasil teve uma capacidade fantástica de resposta, aumentou a produção e as exportações. Mas faltaram alguns cuidados e agora, com a queda dos preços, chegou a hora de arrumar a casa, avalia.

Em entrevista ao The Agribiz, o acadêmico, que tem estudado temas agroalimentares globais nas últimas três décadas, também falou sobre a oportunidade de o Brasil liderar o debate mundial sobre produção agrícola sustentável e bioenergia. Mas também faz um alerta sobre a alta dependência do setor do mercado externo e sobre o crescente “protecionismo climático”.

The Agribiz – 2023 foi um ano marcado por volatilidade no agro e temos agora essa grande indefinição sobre a safra. Como isso vai reverberar no setor em 2024?
Marcos Jank
– Eu acho que essa fase de volatilidade teve início a partir de 2020. Eu tenho escutado muitos produtores dizendo que 2023 teria sido um ano anormal, mas na realidade eu acho que 2023 é a volta ao normal. O período de 2020 a 2022 é que foi anormal.

O especialista em agronegócio Marcos Jank
Marcos Jank | Crédito: Divulgação

Por quê?
Houve uma confluência de fatores que mexeram profundamente com as cadeias de suprimento no mundo e com os preços relativos da agricultura. A combinação da pandemia, depois a guerra na Ucrânia —que mexeu com os mercados de grãos e de fertilizantes— e os problemas climáticos que continuam se acelerando no mundo foi responsável por grande parte do crescimento que o Brasil teve no agro entre 2020 e 2023. O mundo se desarranjou nas cadeias de suprimento e o Brasil conseguiu responder muito bem a isso.

E isso não foi bom?
Então, foram anos muito anormais e que culminaram, em 2022, com uma alta de preços como nunca houve na história. Veja o índice de preços de commodities da FAO. De janeiro de 1990 até hoje, o momento mais alto dessa série foi em 2022. Mais alto do que foi em 2008 a 2012, quando todo mundo fala que houve o boom de commodities. Isso gerou, obviamente, uma situação anormal e agora, em 2023 e 2024, é a volta à normalidade. Eu estou chamando isso de freio de arrumação.

O que deve mudar?
Nós finalmente vamos voltar a considerar o que são preços relativos. O pessoal perdeu um pouco a noção das coisas com a falta de defensivos, com as subidas de preços em dólar e mesmo em reais. E esses preços agora caíram. O produtor, as empresas de insumos têm que fazer as contas e arrumar a casa. Obviamente, a safra 2022/23 foi espetacular, a melhor da história. E também as exportações. Estamos falando de um aumento de 60% nas exportações do agro, em dólares, em apenas dois anos (entre 2020 e 2022). A capacidade de resposta da agricultura brasileira é extraordinária. O Brasil reagiu muito bem, produziu muito mais. Agora os preços caíram.

Acendeu uma luz amarela no setor?
Eu acho que luz amarela não é a palavra certa. Tem gente que já está com a luz vermelha acesa, outros com a luz amarela e tem gente com a luz verde. Em alguns locais vai ter perda na produção, vai ter inadimplência, vai ter impacto no crédito. Mas isso não quer dizer que o agro vai deixar de crescer. No Sul, é um ano de recuperação. A minha única certeza é que o agro continuará expandindo, principalmente em função de uma demanda firme que ainda existe no mundo. A demanda brasileira não é grande coisa, mas a demanda internacional continua crescendo.

“Tem gente que já está com a luz vermelha acesa. Em alguns locais vai ter perda na produção, vai ter inadimplência, vai ter impacto no crédito”

O Brasil vai continuar se consolidando como grande fornecedor global de alimentos? Não está na hora de aproveitar a oportunidade para agregar mais valor à produção?
O Brasil hoje é o quarto ou quinto maior produtor mundial do agro. Se a gente olhar todos os produtos do agro, a cadeia produtiva inteira, o Brasil tem entre 3% e 4% da produção mundial. Quando a gente olha somente as commodities agroindustriais, que é a nossa especialidade, o Brasil é o terceiro maior exportador mundial, atrás da União Europeia e dos Estados Unidos — e já estamos a caminho de superar ambos. Ou seja, o Brasil será o maior exportador de commodities agroindustriais do mundo. Nós estamos falando aí de cerca dez cadeias produtivas. Isso quer dizer que a gente não exporta tudo. Exportamos basicamente commodities agroindustriais cuja maior parte, ou quase a totalidade, não chega ao consumidor. Elas são usadas no reprocessamento mundo afora. O maior exemplo é a soja.

Exportação do agro
Navio graneleiro no porto de Paranaguá; Brasil se especializou em commodities | Crédito: Claudio Neves/Portos do Paraná

Qual é a participação do Brasil nas exportações mundiais?
Toda a exportação brasileira de agro representa 8% da exportação mundial. Então essa conversa que a gente é ou vai ser o celeiro do mundo, que o mundo depende do Brasil… Precisamos ser um pouco mais modestos. Com 3% ou 4% da produção mundial e com 8% da exportação, focando em dez produtos, a gente não está, de fato, alimentando o mundo. Estamos contribuindo para a alimentação do mundo e, pela minha experiência, os países não vão depender de outros em comida. Nas principais commodities agrícolas, o Brasil é campeão mesmo, mas a gente tem que ter uma certa modéstia e entender que representamos 8% da exportação mundial de todo o agro. Somos pequenos na exportação mundial e ainda menores na produção.

“Precisamos ser um pouco mais modestos. Com 3% ou 4% da produção mundial e com 8% da exportação, focando em dez produtos, a gente não está, de fato, alimentando o mundo”.

O Brasil vai continuar crescendo como fornecedor global?
Na rota das commodities o Brasil vai continuar crescendo e vai crescer em produtividade, sobre pastagens degradadas e em sistemas integrados de produção que nos permitem fazer várias atividades na mesma terra. Nos especializamos em ser um país de grandes volumes e preços competitivos. E com uma capacidade incrível de reagir muito rapidamente à conjuntura e também de colocar esse produto do outro lado do mundo.

E o que falta o Brasil fazer, além de produzir muito bem commodities?
Valor adicionado. Você pega, por exemplo, o caso de frutas, que seria um setor bárbaro para fazer valor adicionado. O Brasil faz frutas deliciosas, tropicais, e exporta hoje menos de US$ 1 bilhão. O Chile faz US$ 6,5 bilhões em exportações de frutas. O Peru está exportando US$ 5 bilhões em frutas. Os peruanos vieram a Petrolina ver como fazíamos nossas frutas irrigadas e hoje eles fazem melhor. Nossos vizinhos estão se especializando cada vez mais em valor adicionado e assinaram acordos comerciais que garantem um acesso privilegiado principalmente aos EUA e UE. É curioso: enquanto nós aqui no Cone Sul estamos olhando para commodities e para a China, ao nosso lado tem experiências maravilhosas de valor adicionado em agro, construído a partir de acordos comerciais.

O Brasil focou demais na China?
Os três maiores importadores, hoje, são China, seguida pelos EUA e logo atrás a UE. Cada um desses três representa hoje em torno de 15% da importação mundial. Então se a gente somar China, UE e EUA como importadores, estamos falando de metade das importações mundiais de agro. E desses três, a gente focou demais na China, e por exemplo, não focamos nada nos EUA. O Chile praticamente hoje exporta a mesma coisa que o Brasil para os EUA de agro. A gente pode fazer muito melhor. Frutas, café, sucos, pescados, alimentos processados… Tem uma infinidade de coisas que poderíamos fazer mais.

Faltam acordos comerciais para estimular a produção de valor agregado no agro?
Eu acho que falta um pouco de tudo. A gente não assinou acordos comerciais com ninguém, a não ser com países muito pequenos. Mesmo o acordo com a EU —que já era para ter sido assinado há muito tempo— até hoje não foi e não creio que vá ser.

O que mais falta?
Não fizemos os investimentos para fazer as especialidades, porque para fazer especialidade tem que ter padrão, logística, marca, denominação de origem, certificação. Tem um monte de coisas do mundo das especialidades que tem a ver com você se diferenciar junto ao consumidor, e que a gente nunca prestou muita atenção porque o nosso mercado interno é enorme. E exportar especialidades dá um trabalho louco. Não tem nada de errado a gente ser especialista em commodity. Commodity é super avançado, são poucos os países que conseguem fazer commodity para exportar. O Brasil é um dos mais fortes. Mas aí tem outras coisas que a gente poderia ter feito e não fez.

Ainda dá tempo de reverter?
A gente tem hoje condições físicas —de clima, solo, temperatura, água— para expandir tanto na commodity como na especialidade. Temos um produtor muito motivado, capacitado, jovem.

Como você o potencial do Brasil em energias renováveis?
Estamos numa década muito focada em proteínas. Eu acho que, de dez anos para frente, vamos entrar na transição energética global. E aí não tem bala de prata, tem que atuar em diversas frentes. E é uma luta para o Brasil estar entre as opções que o mundo tem hoje.

Colheita de cana-de-açúcar: Brasil deve reposicionar o etanol no novo mundo da bioenergia, diz Marcos Jank | Crédito: Schutterstock

O SAF vai entrar nesse hall de alternativas?
Eu acho que o SAF vai ser uma alternativa interessante para a gente. Porque os aviões atravessam países, né? Então, o SAF não vai funcionar se ele só existir nos EUA ou na UE. Ele vai ter que existir em todos os lugares que têm aviões. É uma solução boa porque vai ser um preço mais alto do que o preço de etanol e de biodiesel. Mais à frente, vamos ter o hidrogênio verde, que o Brasil já está testando. Estamos vendo experiências muito legais de metano produzido a partir de vinhaça, restos de madeira, ou mesmo resíduos que sobram da produção animal. O Brasil deveria ser o porta-bandeira da questão da bioenergia.

O Brasil está de fato assumindo esse papel?
Eu acho que é uma questão de reposicionar, repaginar o nosso velho biocombustível no novo mundo da bioenergia. Temos que posicionar a nossa experiência lá fora, porque ela é uma experiência antiga e muito boa que não é reconhecida. Hoje, você vai para uma conferência como essa agora lá nos países árabes, e quando se fala de Brasil é só desmatamento. Como se o Brasil fosse sinônimo de desmatamento e não tivesse mais nada para dizer. E a gente tem muita coisa para dizer, tanto em energia renovável, como em sistemas integrados de produção.

Quais são os maiores desafios para o Brasil se posicionar nesse debate?
Aí tem um problema, e a gente vai ter que lidar com ele. Os países estão usando o clima para construir políticas protecionistas, políticas de reindustrialização. Fizemos um estudo mostrando que a lei americana que dá US$ 740 bilhões para investimento em energia renovável, transportes e saúde nos EUA (o IRA, Inflation Reduct Act) é basicamente um programa super protecionista. Tenho chamado isso de protecionismo climático. Um protecionismo cuja raiz é o clima e, por ser o clima, vale tudo. Eu duvido que o IRA, que é um programa teoricamente para reduzir a inflação, passaria nas regras da OMC. Só que hoje pode tudo. Não tem mais OMC e é um vale-tudo de governos. Essa volta do protecionismo realmente é uma coisa que assusta, porque pode distorcer as vantagens comparativas. Temos que que ficar muito atentos.

“Os países estão usando o clima para construir políticas protecionistas, políticas de reindustrialização. Só que hoje pode tudo. Não tem mais OMC e é um vale-tudo de governos.”

Qual é a sua avaliação da COP-28?
Nessa COP, começou a haver uma discussão mais importante sobre o conceito de food systems. Uma mudança no conceito europeu, que até agora era predominante, de ser mais restritivo. Que no fundo defendia produzir menos —que não é o que o mundo precisa. O mundo precisa produzir mais, com técnicas que respeitem o clima. Ou seja, o tema da adaptação de sistemas de produção de alimentos está em pauta. O Brasil ainda é visto mais como vilão do que como solução. Mas agora existe pelo menos uma luz para que os debates não fiquem só em cima de desmatamento e entrem em sistemas alimentares sustentáveis. E eu estou falando de um sistema inteiro mais eficiente e de tecnologias de adaptação às mudanças do clima. Não só para diminuir o impacto delas, mas também tecnologias que permitam aumentar a produtividade e diminuir a emissão.

O Brasil pode liderar essa onda de adaptação da produção, e não mitigação?
O Brasil vai sediar a COP daqui a dois anos. Tem que ser o porta-voz dos trópicos. O que a gente pode trazer de novo? Os sistemas que utilizamos para produzir alimentos, as nossas experiências em energia renovável. E também vamos sediar outras reuniões que são tão relevantes quanto a COP. A reunião do G20, em novembro de 2024, é uma grande chance de o Brasil trazer o tema da segurança alimentar global. Se eu pudesse dizer um único tema que o Brasil deveria colocar no centro das conversas, chama-se segurança alimentar planetária. É muito mais do que combate à fome ou do que qualquer ideia de que você vai fazer isso com a agricultura regenerativa ou orgânica.

No G20, o debate seria mais econômico?
Você tem que estudar onde estão os grandes balanços de comida do mundo, tem que abrir mais os mercados, reduzir os subsídios que distorcem o comércio, discutir a questão da proteína, porque há um grande déficit do mundo da proteína e fibras, principalmente na África e na Ásia. Tem que discutir logística, tem que discutir produtividade e insumos de maneira geral, não só os bioinsumos, porque não dá para você resolver o problema da fome só com os bioinsumos. O Brasil é o lugar certo para trazer esse debate. No G20, com uma pauta mais econômica, e um ano depois, na COP com uma pauta mais climática. São duas grandes oportunidades para a gente se reposicionar.