Soja

A boa e velha China está de volta

Após cinco anos de importações estagnadas, havia um ceticismo que levava a uma conclusão simples, mas equivocada

Para usar uma expressão que volta e meia anda pela boca do povo, o gigante acordou. Estamos falando nesse caso das importações chinesas de soja, que em 2023 devem chegar a 102 milhões de toneladas, passando da marca de 100 milhões de toneladas.

Isso ocorre na primeira vez desde 2020/21, uma vez que há oferta amplamente disponível e inexistem choques de demanda — dois aspectos que nos últimos cinco anos prejudicaram o trade para a China.

Os números são puxados pelo esmagamento, consistentemente acima de 2 milhões de toneladas semanais entre maio e outubro — algo por sua vez impulsionado por margens altas no curto prazo.

Nesta mesma época do ano passado, quem ousasse projetar uma recuperação expressiva das importações chinesas, como era o nosso caso na Veeries, tinha de estar preparado para expressões de dúvida e questionamento.

Após cinco anos de importações médias de 93 milhões de toneladas, havia um ceticismo guiado pelo retrovisor que levava a uma conclusão simples, mas equivocada: as compras chinesas de soja tinham se aproximado do teto depois de crescer quase seis vezes de 2004 a 2017, chegando a um patamar de 95 milhões de toneladas anuais.

Demanda da Cina por soja

Esse viés majoritariamente pessimista se baseava numa visão rasa e generalista, sem levar em conta os reais motivos que limitavam as importações pela China, relacionados a uma série de eventos extremos iniciada em 2018. Vejamos:

  • Em 2018, o início da guerra comercial com os Estados Unidos, ainda no governo Donald Trump, praticamente tirou a soja americana da pauta de importações da China, que assim passou a recorrer principalmente ao Brasil. A situação criou uma restrição da oferta que levou a uma queda na demanda.
  • Quase ao mesmo tempo começou a tomar corpo um choque de demanda. Os primeiros casos de febre suína africana foram oficialmente registrados na China em agosto de 2018, dando origem a uma epidemia só controlada em meados de 2019. Saldo negativo: redução de cerca de 30% do rebanho, dando origem a um forte choque na demanda.
  • Em 2019, quando as relações comerciais entre China e Estados Unidos se encaminhavam para uma relativa normalização, veio um golpe do clima. A safra americana 19/20 quebrou quase 20%. Mais uma vez, restrições na oferta impuseram obstáculos ao crescimento da demanda.
  • Disso pulamos para 2020 e 2021 e a pandemia de covid-19 e seus efeitos em cascata. Começou com as restrições à movimentação de bens e pessoas (que na China foram ainda mais severas que no restante do mundo) e desembocou na disparada da inflação e dos preços das commodities. O choque concomitante na demanda e na oferta turvaram a visão sobre o consumo e as importações chinesas.
  • Em 2022, quando a economia chinesa ainda se recuperava do pós-covid, começou o conflito Rússia-Ucrânia, alimentando por mais alguns meses o choque das commodities agrícolas.

Para somar a esses eventos, o crescente atrito geopolítico com os Estados Unidos potencializou na China as preocupações relacionadas à segurança alimentar. Assim, as autoridades chinesas subiram o tom ao externalizar a intenção de reduzir o consumo de soja e a dependência externa — seja incentivando a produção doméstica, seja buscando fontes alternativas de proteína para as rações. Certamente, trata-se de um objetivo de longo prazo. Seus efeitos imediatos, porém, parecem ter sido exagerados pelo mercado.

O que os fatos nos mostram até o momento é que a China continua firme e forte como principal comprador de commodities agrícolas, algo com profundas implicações para o agronegócio brasileiro, que tem na China o principal parceiro comercial. (Praticamente dois terços da soja importada pelo mercado chinês têm origem brasileira.)

E o que esperamos para a safra 23/24? Projetamos que as importações chinesas de soja vão continuar crescendo, superando 105 milhões de toneladas, das quais o Brasil deve contribuir com boa parte do volume.

Não são projeções livres de riscos — muito pelo contrário. A safra sul-americana ainda nem acabou de ser semeada. Temos uma situação potencialmente explosiva no Oriente Médio. Para completar, no fim de outubro, surgiram rumores de novos surtos de febre suína africana na China, cuja severidade ainda não pode ser mensurada.

Seriam, mais uma vez, choque externos ao mercado. A não ser por isso, o gigante chinês tem tudo para continuar com fome de soja.

*Marcos Rubin é fundador da Veeries