
O Brasil atingiu o status de país livre de febre aftosa sem vacinação. A notícia está sendo divulgada como uma grande conquista, mas a verdade é que o setor produtivo segue preocupado e apreensivo, uma vez que ela está ligada a vários riscos. O principal deles é o fato de possuirmos o maior rebanho bovino comercial do mundo e uma fronteira aproximada de 25.000 km. Destes, 16.885,7 km são fronteiras terrestres.
Se a fronteira possui rotas clandestinas que permitem o conhecido e reconhecido trânsito de drogas, armas, contrabandos diversos e criminosos, por que um vírus invisível se deteria?
A principal justificativa para a busca do status sempre foi que a de que a medida permitiria ao Brasil acessar mercados exigentes, como Japão e Coreia do Sul. Mas esses países já compram do Uruguai, que possui status de livre de febre aftosa com vacinação. Aliás, em 2001 o país se viu às voltas com um surto local. A premissa de que o status seria o impedimento ao Brasil para exportar aos grandes mercados pagadores asiáticos cai aqui por terra.
Japão e Coreia compram carne do Uruguai pois lá buscam o produto oriundo de animais de sangue taurino, cuja carne possui perfil mais gourmet e menos comoditizado. O Uruguai é conhecido produtor de produto de tal perfil, assim como a Austrália, outro grande fornecedor da nata asiática de compradores. Prova disso é que o Japão paga, em média, US$ 8 mil pela tonelada de carne in natura importada, enquanto o preço médio do mesmo produto para a China fica em US$ 5,9 mil. Considerando a média ponderada de todos os tipos de carne importada, o Japão paga uma média de US$ 6,5 mil/tonelada e a China, US$ 4,9 mil/tonelada.
O Japão possui um PIB per capita de US$ 33,7 mil e a Coreia de US$ 33,1 mil. O da China fica em US$ 12 mil. Ao que parece, a diferença de pagamento se dá mais por uma questão de tipo de produto e perfil de consumidor do que de status sanitário ligado à febre aftosa (lembrando que parto da premissa de que o Uruguai exporta para Japão e Coreia do Sul e que possui status livre de febre aftosa com vacinação, nosso status até ontem).
O Brasil já é o país com o maior número de parceiros comerciais do mundo para a carne bovina, bem como o maior exportador líquido, o que mostra que, até o momento, esse não foi o impeditivo para o desenvolvimento do nosso mercado. Até mesmo a União Europeia, exigentíssima em suas regras comerciais e sanitárias, importa do Brasil há décadas.
Outro ponto importante: o Brasil detém o maior rebanho comercial do planeta e, por vacinar há até pouco tempo, mantinha também um estoque global de vacinas contra a febre aftosa que podia ser utilizado em surtos ao redor do mundo, por manter polos produtores da vacina ativos.
A América Latina possui um Banco Regional de Antígenos/Vacinas (BANVACO) composto por Paraguai, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Uruguai. O tamanho do estoque de vacinas contra a febre aftosa é desconhecido, uma vez que estrategicamente é mantido sob sigilo.
A partir daqui, não usarei os dados estimados da Agrifatto sobre rebanhos, mas aqueles informados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), através da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), que considera metodologia antiga do Departamento Norte Americano de Agricultura – USDA. Conduzirei assim a análise para informar rebanhos e compará-los entre países considerando os diferentes status e níveis de vacinação da América do Sul.
Em 2023, os dados indicam um rebanho na América do Sul de 387,4 milhões de cabeças. Tirando o Brasil dessa conta, o rebanho combinado dos demais parceiros do BANVACO é de aproximadamente 146,6 milhões de cabeças. O Brasil sozinho abocanha 240 milhões de cabeças estimadas ou 62% do contingente sul-americano.
Do rebanho sul-americano de 387,40 milhões de cabeças, 309,39 milhões (79,9%) eram consideradas livres com vacinação, 62,87 milhões (16,2%) livres sem vacinação e 15,13 milhões (3,9%) não livres com vacinação em 2023.
O rebanho bovino brasileiro, 240,81 milhões, são distribuídos em: 191,45 milhões (80%) de cabeças livre com vacinação e 49,36 milhões (20%) livre sem vacinação.
Apenas a Venezuela é considerada país não livre com vacinação, e detém 3,9% do rebanho da América Latina, aproximadamente.
Isso posto, vale perguntar: considerado que as vacinas possuem prazo de validade médio de 24 meses, seria o BANVACO suficiente para ações de contingência caso houvesse necessidade de vacinação emergencial?
Ainda, considerando que essa vacina vence e que não será mais utilizada ativamente, isso significa que o próprio estoque global de vacinas diminuirá?
Em comparação com o rebanho da América Latina livre com vacinação, o rebanho bovino brasileiro representa 61,9%, para o rebanho da América Latina livre sem vacinação, o rebanho bovino brasileiro representa 78,5%.
Ainda, considerando que houve caso recente de febre aftosa no continente europeu, quem garante que a febre aftosa, uma doença infecciosa aguda, estará descartada de nosso continente?
Existe atualização para o plano de contingência considerando a mudança na dinâmica de produção e estoques de vacina, caso haja um foco? Houve aumento de investimento para controle sanitário nas fronteiras como contrapartida da retirada da vacina?
Em 2024, o Brasil exportou um volume total de 2,97 milhões de toneladas de carne bovina, ou aproximadamente 30% da produção de 10,21 milhões de toneladas. Este volume movimentou US$ 12,8 bilhões em exportações, um aumento de 22% em relação ao ano anterior. Esse é o tamanho do risco que corremos para uma premissa que não está clara.
Considerando que o Brasil detém o maior rebanho comercial de bovinos do mundo, vale a pena o risco?
As que coloco aqui são perguntas que não podem deixar de ser feitas, por mais que a comemoração esteja divertida.
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Lygia Pimentel, colunista de The AgriBiz, é médica veterinária, economista e diretora da Agrifatto.