Opinião

E se o fim da vacinação contra a aftosa for uma cilada?

“Se tudo correr bem, o Brasil e os brasileiros ganham quase nada. Se qualquer coisa correr mal, os prejuízos serão enormes”

Os fatos são conhecidos. Todas as estimativas indicam que abate de gado e as exportações de carne bovina serão recordes em 2024. Com a oferta abundante, os preços da arroba estão deprimidos e os pecuaristas, desanimados.

Mas enquanto o preço ainda fisga a atenção dos players envolvidos na pecuária, uma mudança institucional está passando despercebida de suas consequências e riscos: a proibição da vacinação contra a febre aftosa em todo o país.

O governo brasileiro reconheceu mais 16 estados como livres de febre aftosa, sem vacinação, totalizando 21 estados que não vacinam os seus rebanhos, além do Distrito Federal.

Na esteira do reconhecimento e com o objetivo do obter a chancela da Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA), também ficam proibidos o armazenamento, a comercialização e o uso de vacinas contra a febre aftosa.

Mas será que o fim da vacinação é mesmo o melhor caminho ou é uma aposta arriscada?

O impacto da aftosa

Quem convive com crianças já deve ter se deparado com uma doença chamada mão-pé-boca. O nome remete às manchas vermelhas e feridas que aparecem nas mãos, pés e boca das crianças, que surgem após um período de febre alta e podem causar mal-estar, falta de apetite, dificuldade de alimentação e de hidratação, vômitos e diarreia.

A febre aftosa é o equivalente bovino e leva à perda de peso dos animais e à redução da produção de leite. Para impedir a disseminação é preciso realizar o abate sanitário de todos os animais no local de risco, o que pode impactar diretamente a segurança alimentar na região e a sustentabilidade dos negócios.

Por essas características, a febre aftosa foi considerada a doença animal mais importante do mundo em termos econômicos e resultou em forte regulamentação no comércio internacional.

A patologia trouxe muita dor de cabeça aos governos brasileiros desde o final do século 19. Vivenciamos períodos conturbados até o final dos anos 1990, quando finalmente houve avanço no controle sanitário e o fim da ocorrência da doença em solo brasileiro.

Felizmente, o último caso foi registrado em 2006, o que quer dizer que há quase duas décadas podemos nos orgulhar de ter vencido a guerra contra esta doença avassaladora.

Com o passar do tempo, os pontos positivos da erradicação deram lugar aos aspectos negativos da vacinação. As queixas incluem custos com manejo sanitário, contratação de veterinários e compra de vacinas.

Além disso, o procedimento pode causar lesões no local da aplicação e acarretar perdas econômicas. Estudos apontam que tais despesas, somadas, representam de 0,35% a 1% da receita obtida com a venda do animal para abate.

O fascínio das exportações

Mas a principal motivação para se interromper a vacinação não reside nos custos. A origem está nas regras estabelecidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), em que países que não apresentam a ocorrência da doença e não praticam vacinação não podem importar animais ou produtos derivados de países que vacinam.

Com o objetivo de expandir a relevância internacional do nosso país, foi desenvolvida a narrativa de que o fim da vacinação levaria a incrementos expressivos no volume de exportação e na entrada da carne brasileira em países mais exigentes.

Na maioria das entrevistas sobre o tema, mais exportações e acesso a novos mercados são expostos como consequência certa e mecânica do fim da vacinação. Mas será que são mesmo?

Durante meu mestrado, me debrucei sobre o tema e concluí que a eliminação da doença é uma condição necessária, mas não suficiente para atingir os objetivos apresentados.

Analisando os dados, não houve aumento significativo nas exportações de carne bovina ou suína nem no PIB agrícola cada vez que um novo Estado brasileiro recebeu o reconhecimento internacional de livre de febre aftosa, com ou sem vacinação.

Quais são os riscos?

Com cerca de 15 mil quilômetros de fronteira com os países vizinhos, a medida vai exigir investimentos adicionais em vigilância sanitária e fiscalização. Mais do que isso, o Brasil recentemente investiu em vacinações na Bolívia, Paraguai e Venezuela. O último país sequer possui avaliação reconhecida em relação à presença da febre aftosa.

Em caso de reintrodução do vírus, o excesso de oferta causado pela interrupção das exportações derruba os preços internos e causa prejuízos para o setor.

Como os animais em risco devem ser abatidos e incinerados, tem-se mais prejuízos financeiro por perda de patrimônio, além da eliminação de alimentos aptos para o consumo da sociedade, pois a febre aftosa não é uma zoonose.

Tais eventos geram crise de imagem para a pecuária e desconfiança em parcelas da sociedade, o que pode levar à redução do mercado consumidor mesmo após o reestabelecimento da normalidade.

Por meio da vacinação, temos garantia da erradicação da doença, maior previsibilidade e ambiente propício para investimentos de longo prazo.

Os governantes deveriam incentivar a inovação tecnológica e impulsionar práticas como identificação animal, rastreabilidade, qualidade da carne e padronização, entre outras. Tais medidas também são necessárias para incrementar a quantidade e a precificação da carne brasileira enviada para o exterior.

A decisão por cessar a imunização do rebanho faz o setor correr riscos desnecessários. Ficamos com a definição exata de uma assimetria negativa: se tudo correr bem, o Brasil e os brasileiros ganham quase nada. Se qualquer coisa correr mal, os prejuízos serão enormes.

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Luís Schmidt é economista e PhD com foco em economia agrícola e gestão de riscos, com ênfase em derivativos e seguros paramétricos. Professor do MBA Executivo em Agronegócios da FGV, possui mais de 10 anos de experiência em análise estratégica de dados e cenários, além de ter atuado no desenvolvimento de mercado de commodities e relacionamento com clientes do agronegócio na B3.