REPORTAGEM ESPECIAL

Recuperação judicial no agro: nova avalanche à frente?

O fatídico (e temido) 30 de abril passou. A partir de agora, começa a ficar claro o tamanho real da inadimplência dos produtores

O fatídico (e temido) 30 de abril passou. A data de vencimento da maior parte das dívidas dos agricultores ficou para trás, ofuscada pela euforia da Agrishow. A partir de agora, começa a ficar claro o tamanho real da inadimplência dos produtores e os impactos que a postergação dos pagamentos pode ter em toda a cadeia.

Enquanto ainda levam algumas semanas até que saia uma fotografia geral do setor, uma tendência é certa: o número de recuperações judiciais deve aumentar.

Pouco menos de metade da safra 2023/24 ainda não havia sido comercializada até meados do mês passado — volume insuficiente para honrar todos os compromissos que venceram em 30/4, segundo Marcelo Oliveira, head de derivativos e responsável pela área de barter da Lavoro, a maior rede de revendas do País.

Numa conta simples, que considera um orçamento de R$ 5 mil para a compra de insumos necessários para o cultivo de 1 hectare de soja, cerca de R$ 225 bilhões foram movimentados na safra 2023/24, estimou Antonio Prado Neto, ex-CEO da Agrex e um executivo com mais de 30 anos de experiência no agro.

“Os casos de recuperação judicial entre os agricultores estão apenas nos estágios iniciais, com expectativas de aumento nas próximas semanas”, escrevem os analistas Leonardo Alencar, Pedro Fonseca e Samuel Isaak, da XP, numa referência à concentração dos vencimentos entre março e maio.

O relatório da XP reforça o que vem sendo dito pelos profissionais que trabalham com recuperação judicial. Para o fundador da Quist Investimentos, Douglas Duek, um dos nomes mais conhecidos no mercado quando o assunto é RJ, entre 25% e 30% dos produtores não têm condição de pagar as dívidas no prazo estabelecido, concentrados entre 30 de abril e 30 de maio.

“Estamos recomendando RJ para 40% dos casos que atendemos”, disse Duek ao The AgriBiz. Historicamente, a taxa de recomendação de recuperação judicial aos clientes que consultam a Quist, casa percursora em RJs, é de 10%.

Nos últimos 16 anos, a Quist prestou assessoria financeira em 220 processos de recuperação judicial, sendo mais de 65 no agronegócio. Só neste ano, já foram dez novos contratos de RJ que somam cerca de R$ 4 bilhões em dívidas. E há uma fila de pedidos para serem protocolados, diz ele. “Tenho umas 40 propostas na rua.”

O período entre abril e maio deve concentrar os novos pedidos, acrescentou Duek, que, com mais de 60 mil seguidores no Instagram e vídeos com mais de 500 mil visualizações no TikTok, viralizou com explicações sobre por que, como e quando pedir RJ.

“O assunto está em voga porque ele é realmente necessário. Eu não estou recomendando isso em massa, cada produtor precisa de um diagnóstico. Mas alguns realmente vão perder tudo se não fizerem recuperação judicial porque estão com uma ineficiência econômica, não conseguem pagar a conta.”

A procura por RJs também segue aquecida nos escritórios de advocacia. No Felsberg Advogados, pelo menos sete casos apareceram no último mês, entre demandas de credores e de devedores. Mas a busca por uma alternativa não judicial continua sendo uma prioridade.

“Em boa parte dos casos, uma conversa entre credores e devedores traz um humor melhor para as negociações do que uma recuperação judicial de cara”, diz Fabiana Solano, sócia do escritório.

A visão de que se trata de uma última alternativa, a ser explorada somente depois de conversas amigáveis com credores, também é compartilhada por Renata Oliveira, sócia do Machado Meyer. “Hoje, até mesmo associações do agronegócio alertam produtores a respeito de como devem olhar para uma RJ”, afirma.

Revendas, indústrias e bancos estão concentrados nas renegociações. O Santander, por exemplo, começou uma negociação proativa com credores em fevereiro, de olho em diminuir os casos de recuperação judicial.

“Nós refizemos o crédito para dois anos, inclusive para dar fôlego. Não adianta fazer para um ano só”, disse Ricardo França, superintendente-executivo de agronegócios do Santander, em uma entrevista na Agrishow. No banco, o prazo pode ser rolado para até três anos.

Os excessos

O dark side dessa situação veio com os excessos cometidos principalmente por escritórios regionais. Em um folder ao qual The AgriBiz teve acesso, um escritório regional coloca a seguinte frase: “A recuperação judicial é a melhor ferramenta para que você, produtor rural que deve mais de R$ 15 milhões, consiga pagar TODAS as suas dívidas com sua produção e não com seus bens.”

A recomendação do escritório vinha em tom apelativo: “Não importa o que as pessoas vão pensar de você se optar pela recuperação judicial. Se você tiver bem ou mal, vão falar mal de você da mesma forma. A questão é que se não for VOCÊ para proteger o seu patrimônio, o seu legado, que você recebeu de herança ou lutou a vida inteira para construir, NINGUÉM fará isso por você”.

Em Mato Grosso, The AgriBiz apurou que escritórios locais chegaram a oferecer comissão aos RTVs pela intermediação entre produtores endividados com interesse em apresentar a RJ e os advogados.

Como chegamos até aqui?

Vários fatores explicam o aumento no número dos pedidos de recuperação judicial: a queda no preço dos grãos, um mercado de crédito mais restrito desde o início do ano influenciado pelo episódio das Lojas Americanas e perdas significativas de produtividade causadas pelo clima em algumas áreas.

Para sentir o termômetro do Centro-Oeste, diante do combo de El Niño e queda nos preços dos grãos, os analistas da XP visitaram cinco cidades diferentes no Mato Grosso: Cuiabá, Rondonópolis, Primavera do Leste, Sorriso e Sinop —o famoso eixo da BR-163 altamente impactado pelo calor e chuvas escassas na última safra.

Em um estudo sobre as margens dos produtores, eles demonstraram a rápida deterioração das margens em poucos meses. Enquanto no período pré-plantio ela era estimada em 26%, já bastante abaixo da média histórica de 38% e superior a apenas duas safras (2008/09 e 2009/10), a margem no período pós-colheita ficou negativa em 9%. Para os arrendatários, a situação é dramática: a margem foi estimada em -26%.

A fotografia das RJs mais recente do setor é da Serasa Experian, referentes ao ano de 2023. Elas apontam um aumento significativo no volume de recuperações judiciais de produtores rurais pessoa física, de 20 em 2022 para 127 no ano passado. Considerando pessoas jurídicas, o aumento foi de 90 para 116 no mesmo período.

É um volume pequeno em comparação ao quadro geral de produtores. No Brasil, segundo os dados do Censo de 2019, existem cerca de 5 milhões de estabelecimentos rurais. Portanto, não se trata de uma crise generalizada no agronegócio — a maior parte dos estabelecimentos, afinal, continua operando sem precisar do recurso.

O que leva à pergunta: por que, então, o volume de RJs no agronegócio tem sido tão discutido? Pelo menos dois fatores ajudam a entender essa ressaca com o tema: a entrada mais significativa do mercado de capitais no agronegócio nos últimos anos e a novidade da RJ de produtor como um instrumento previsto em lei.

O crédito

Grandes bancos conhecem o agronegócio há tempos. Em 2023, o Banco do Brasil, principal financiador do setor, fez o maior desembolso de crédito rural de sua história: R$ 195 bilhões, um crescimento de 8,4% em relação ao ano anterior. Os recursos, é claro, tiveram uma grande influência do Plano Safra — nos seis primeiros meses foram R$ 120 bilhões.

A oferta de crédito tradicional, no entanto, não acompanha o rápido crescimento do setor e não é suficiente para financiar toda a produção agrícola. É nesse gap que entra o mercado financeiro, que passou a se relacionar com o agro recentemente.

A lei que regulamenta os Fiagros e que trouxe, por extensão, uma grande quantidade de fundos ligados ao setor em diferentes casas, é de 2021. O crescimento do patrimônio líquido da classe foi exponencial: passou de R$ 2 bilhões naquele ano para R$ 35 bilhões em março de 2024, de acordo com os dados da Anbima. Hoje, são pelo menos cem fundos dedicados ao agronegócio.

“Há uma forte demanda por títulos incentivados, o que abriu espaço para esses fundos crescerem até aqui. E, ao longo do tempo, devem ganhar cada vez mais liquidez”, diz Thiago Giantomassi, sócio do Demarest.

O crescimento do interesse entre o agro e o mercado financeiro trouxe até mesmo oportunidades para quem já estava dentro dessa cadeia. É o caso da fintech Syde, plataforma lançada no ano passado pela Syngenta para aproximar o mercado financeiro das fazendas que compram com a companhia.

No meio do cenário mais adverso, Fabio Neufeld, head de soluções financeiras para a divisão, afirma que, por enquanto, ainda não há problemas de crédito com essas empresas.

“Seguimos bem atentos para entender esse movimento de recuperações judiciais, de toda forma. Acreditamos que houve um exagero tanto nos pedidos de RJ, em geral, quanto no pânico do mercado financeiro em relação ao setor”, diz.

O momento atual é um choque em relação ao cenário de captação de recursos e estruturação desses veículos. Nos últimos anos, o cenário era de bonança para o agronegócio do Centro-Oeste, com o preço da soja nas máximas — sendo suficientes para absorver a alta dos preços dos insumos agrícolas.

O otimismo em relação ao setor, aliado a novos entrantes nesse mercado, trouxe uma avalanche de crédito com controles desenfreados, como apontam gestores ouvidos por The AgriBiz. Nesse contexto, muitos produtores aceleraram os investimentos e acabaram se alavancando.

Esse combo de boas expectativas com um conhecimento (de alguns players) ainda raso sobre o setor cobrou seu preço neste ano. Com o momento mais adverso para os grãos, (alguns) credores partiram para executar as garantias de seus contratos, e descobriram que o caminho entre a teoria e a prática era muito mais tortuoso do que se previa anteriormente.

“Criou-se uma indústria da recuperação judicial”, dizem diferentes gestores, questionados a respeito do cenário no Mato Grosso. “É muito difícil entrar com um processo desse tipo quando o juiz toma cerveja com o fazendeiro” e outros sinônimos também são facilmente encontrados em conversas com os gestores.

As leis

Colocando à parte a discussão a respeito dos méritos — e necessidades — do judiciário brasileiro, vale a pena entender as mudanças e os instrumentos aos quais produtores rurais têm acesso para se recuperar em momentos de crise ao longo dos tempos. E de como a recuperação judicial se tornou uma alternativa.

A primeira lei que regulamenta recuperações judiciais no Brasil (em geral) veio em fevereiro de 2005. Por meio dela, foram estabelecidas as bases para RJs, recuperações extrajudiciais e falências. No texto, entretanto, não havia nenhuma recomendação específica para produtores rurais ou similares, o que levava os contextos de judicialização desses players a serem decididos de acordo com a interpretação de cada juiz.

“O que acontecia antes era que os juízes eram extremamente protetores ao devedor. Davam períodos de suspensão de ações e execuções a perder de vista, consideravam a maioria dos bens essenciais e impediam o credor de retirá-los da produção. Isso mudou bastante, o que tem feito a temperatura aumentar”, diz uma fonte que acompanha as discussões de perto.

Em 2020, depois de muitas discussões (que chegaram inclusive ao STF), veio a lei que regulamenta os instrumentos de recuperação judicial para esse público. Entre os destaques, passou-se a admitir que eles pedissem RJ desde que comprovassem atividade há mais de dois anos, houve uma definição mais clara a respeito dos créditos excluídos de uma recuperação judicial, e foi criada a possibilidade de o produtor rural apresentar um plano mais simplificado.

Diante desse cenário, houve um aumento da procura por parte dos produtores rurais e de credores por escritórios de advocacia.

As conquências

Um processo de recuperação judicial leva, em média, dois anos para ser concluído, entre idas e vindas. Trata-se de um rito burocrático, que tem o acompanhamento de um juiz a cada evolução do plano. Para além dos custos dessa burocracia em si, estar em recuperação judicial traz uma consequência de negociação para os players que se encontram nesse tipo de situação.

Na CropLife Brasil, entidade que reúne as empresas de defensivos, sementes, biotecnologia e insumos biológicos, o crescimento no número de recuperações judiciais deixou de ser a principal dor de cabeça. Agora, a principal preocupação é o Projeto de Lei 3, de 2024, que propõe um novo texto para a Lei de Falências e ameaçam o principal instrumento no relacionamento entre credores e produtores: as CPRs (Cédulas de Produtores Rurais).

O texto abre margem a interpretações que podem acabar com a proteção das garantias vinculadas às CPRs nos processos de recuperação judicial, o que pode criar um impacto de médio e longo prazo muito grande no crédito agrícola.

“Não se pode mudar a regra do jogo para atender a uma crise que a gente nem compreendeu ainda”, afirmou Arthur Gomes, diretor executivo da CropLife. “O crescimento no número de RJs não é algo tão imprevisível. Alteração de lei é imprevisível. É isso o que encarece o crédito”, afirmou.

O PL, aprovado pela Câmara, está em tramitação no Senado. (Colaborou Luiz Henrique Mendes)