Tree to bar

Paraense contraria a lógica com chocolate fino na Transamazônica

Depois de produzir cacau premiado, casal de pequenos agricultores em assentamento no Pará faz chocolate fino em condições adversas com marca própria

NOVO REPARTIMENTO (PARÁ) — No coração do Pará, em uma das regiões mais quentes do Brasil, uma jovem de 28 anos contraria a lógica, as orientações e até o marido para realizar o sonho de produzir chocolate fino.

Jailiane da Silva mora em Novo Repartimento, um município a 500 quilômetros de Belém que figura entre os líderes em desmatamento na Amazônia. Lá, existem 35 assentamentos rurais. Jailiane vive em um deles, conhecido como Tuerê, um dos maiores da América Latina.

Seu marido, o agricultor Francisco Cruz, 36, já se destaca entre as milhares de famílias que vivem na região da rodovia Transamazônica. Ele cultiva cacau em um sistema agroflorestal, em que vegetação nativa, mais alta, divide o solo com o cacau e faz sombra para a cultura, aumentando a produtividade no longo prazo.

Francisco Cruz colhe cacau em sua propriedade de 9 hectares em Novo Repartimento (PA) | Crédito: Divulgação JBS / Célio Cavalcante Filho

O cacau de Francisco e de alguns de seus vizinhos — assim como os chocolates feitos por terceiros usando a matéria-prima do Tuerê — recebeu diversos prêmios nos últimos anos, despertando a vontade da esposa de fazer mais.

“O Francisco começou a mandar o cacau para fora e eu sempre via os outros fazendo chocolate e ganhando prêmios. Eu disse: rapaz, isso não está certo, não. Tanto esforço e a gente manda para fora?”, conta Jailiane.

Jailiane da Silva produz chocolate fino em condições inapropriadas em sua cozinha | Crédito: Divulgação JBS / Célio Cavalcante Filho

Ela queria fazer seu próprio chocolate. No início, encontrou resistência do marido, que achou a proposta ousada demais. Mas ele acabou topando. No ano passado, Jailiane fez um curso de “chocomaker” e outro especializado em chocolates bean to bar. O casal comprou uma melanger (panela específica para fazer chocolates) e ela deu início aos trabalhos. Hoje, ela faz o seu chocolate tree to bar — da árvore à barra.

“A vontade é grande, mas tem alguns poréns”, afirma.

Chocolate a 40º

Jailiane faz o chocolate em sua própria cozinha — um local totalmente inadequado para tal. Primeiro, pela temperatura elevada — na semana passada, quando a reportagem visitou a propriedade do casal, o termômetro batia 37 graus. No entanto, ter um ambiente climatizado é fundamental no processo de “temperagem”, explica Jailiane. O chocolate que sai da melanger a 45 graus precisa ser despejado numa pedra com uma temperatura de, no máximo, 28 graus.

Produção de chocolate de Jailiane em sua melanger comprada no ano passado; calor da região atrapalha produção | Crédito: Tatiana Freitas

“E como faz num calorzão desse?”, ela pergunta, já emendando a resposta: “A bonita aqui acorda cedo e dorme tarde” para aproveitar as temperaturas mais amenas do dia. Além de dedicação, criatividade para crescer não falta. Jailiane também faz nibs de cacau —um deles (delicioso!) caramelizado com açúcar mascavo, uma inovação que muita indústria gostaria de ter no portfólio.

O casal aguarda a liberação de um financiamento para finalmente construir um espaço apropriado para a produção do Chocolates Tuerê, como foi batizado o chocolate de Jailiane. Mesmo com todas as dificuldades, a jovem faz um chocolate fino que não fica devendo a nenhum outro vendido nos grandes centros. E já conquista clientes locais, mesmo com o sabor menos doce e o preço mais alto em comparação com os concorrentes vendidos no mercado — e que não são chocolates, pondera Jailiane. No Brasil, para ser classificado como chocolate, o produto precisa ter no mínimo 25% de cacau. Os chocolates de Jailiane têm 50% e 70%.

Por enquanto, a esposa de Francisco produz os chocolates apenas sob encomenda, pois não tem condições adequadas para o armazenamento. Suas barras de 50 gramas, vendidas a R$ 10 cada uma, já chegaram a consumidores de Novo Repartimento, Belém, Brasília e, agora, à residência desta repórter em São Paulo. O segredo de Jailiane?

Tree to bar: família do assentamento Tuerê produz cacau, chocolate e nibs de cacau | Crédito: Divulgação JBS / Célio Cavalcante Filho

“A gente não vende só chocolate, a gente tenta vender a nossa história”, diz.

RestaurAmazônia

Francisco e Jailiane formam uma das 1.300 famílias apoiadas pelo projeto RestaurAmazônia, desenvolvido pela Fundação Solidaridad com apoio do Fundo JBS pela Amazônia. O objetivo do programa é promover a agricultura de baixo carbono com a implantação de sistemas agroflorestais de produção. O cacau e sua integração com a pecuária (com estímulos para pastagem rotacionada) é o carro-chefe.

O RestaurAmazônia é dedicado a pequenos agricultores que vivem à beira da rodovia Transamazônica, área que responde por mais da metade do desmatamento do Pará, Estado onde mais se desmata no País. A região é caracterizada por pastagens degradadas e de baixa produtividade que aumentam a pressão por abertura de novas áreas há décadas.

“Nossa missão é propor um novo modelo de desenvolvimento”, afirma Mariana Pereira, gerente do programa RestaurAmazônia. Por meio de assistência técnica, o projeto estimula as famílias a diversificar a renda, adicionando um componente florestal à pecuária extensiva. Como o cacau é uma planta nativa da Amazônia, os resultados desse tipo de integração têm sido positivos, levando a um aumento da renda e redução do desmatamento, segundo ela.

O projeto, que já existe há quase uma década, ganhou escala com o apoio do Fundo JBS, que dá suporte a outros 19 programas na região amazônica. Segundo Andrea Azevedo, diretora executiva do Fundo JBS pela Amazônia, a intenção é potencializar projetos que já estão em andamento e ajudá-los a se tornar independentes.

Nos últimos dois anos, R$ 62 milhões foram comprometidos pelo Fundo JBS em projetos que visam ajudar pequenos produtores na Amazônia a desenvolver uma pecuária mais sustentável e promover negócios que mantenham a floresta em pé.

Cacau fino

Especificamente no assentamento Tuerê, a Fundação Solidaridad também tem incentivado produtores a adequar o manejo buscando melhorar a qualidade do cacau.

O cacau da região tornou-se reconhecido por um “terruá” (neologismo criado a partir do francês terroir) com características muito específicas e com atributos valorizados por chocolateiros, ou cholatiers. É o caso de Bruno Lasevicius, da Casa Lasevicius, que produziu chocolates utilizando o cacau de Tuerê e valorizou os produtores, estampando na embalagem o rosto de alguns dos agricultores premiados.

“O cacau Tuerê trouxe auto estima às famílias e aumentou o engajamento delas ao projeto”, afirma Mariana, da Fundação Solidaridad.

Chocolates finos com a identificação dos fornecedores da matéria-prima, o cacau do assentamento Tuerê | Crédito: Fundação Solidaridad

Também ampliou a renda. Os preços pagos pelo cacau fino produzido com as amêndoas do Tuerê são mais que o dobro do valor pago pelas amêndoas tradicionais —às vezes, até quatro vezes mais— , enquanto os custos para produzir um cacau fino são aproximadamente 50% maiores. Mas ele exige dedicação: para produzir um cacau fino, o processo do pós-colheita ao armazenamento demora 14 dias, em média. Só o processo de fermentação exige seis dias, enquanto no cacau convencional o mesmo processo dura no máximo três dias.

Por isso, nem todo o cacau produzido por Francisco é vendido como fino. Assim como no chocolate, a produção do cacau fino é feita sob encomenda. “A maior quantidade que já vendi para um chocolateiro foi 400 quilos”, diz. Sua produção anual na propriedade de 9 hectares é, em média, de 8 toneladas.

“Estou vendo a possibilidade de fazer quantidades a mais de cacau fino mesmo sem contrato. É gostoso trabalhar com ele”, diz Francisco.

Este ano, suas amêndoas estão concorrendo a um prêmio internacional do programa Cocoa of Excellence em Amsterdã, na Holanda. Quem sabe, com uma nova medalha, será possível aumentar mais o volume na próxima safra.

*A jornalista viajou a convite da JBS