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Os semeadores da agricultura regenerativa

Conheça os agrônomos que têm se destacado na transformação da agricultura por seu conhecimento técnico, didatismo e abertura para dialogar com diferentes alas

Investidores buscam projetos de agricultura regenerativa

Agricultura regenerativa é o tema da moda no agronegócio. Mas nem tudo são flores quando se está em evidência. Apesar de ter cada vez mais adeptos, a agricultura regenerativa também tem ganhado haters, espelhando a polaridade do cenário político nacional.

Diferentes alas rejeitam a terminologia, amplamente adotada pelo mercado. O gueto dos orgânicos não admite o uso de insumos químicos; a tribo da agroecologia diz não ver nada novo na agricultura regenerativa, que seria praticada por eles há muito tempo; enquanto os produtores tradicionais se sentem deixados de lado.

Neste universo, não há uma pessoa que domine 100% das temáticas regenerativas. Cada engenheiro agrônomo é referência em uma área e, juntos, eles contribuem para o avanço de uma agricultura cada vez mais sustentável — e na divulgação das melhores práticas em um mercado ainda dividido.

Na tentativa de prestigiar o bom trabalho que vem sendo desenvolvido e conectar os bem-intencionados na jornada por uma agricultura mais equilibrada e resiliente, a equipe de The AgriBiz apresenta, nesta reportagem, alguns profissionais que têm se destacado não só pela habilidade técnica, mas pela capacidade de dialogar e transitar bem em todas as alas da agricultura. Conheça cada um deles e o seu perfil de atuação:

Madelaine Venzon

Engenheira agrônoma, Madelaine é pesquisadora da Epamig, coordenadora do Programa de Agroecologia da entidade e membro do comitê assessor da Agronomia do CNPq. A profissional tem se destacado pelo “controle biológico conservativo”, técnica que utiliza a diversificação de plantios para atrair os inimigos naturais das pragas da cultura principal.

“Como isso pode ser feito? Fornecendo alimento alternativo, como pólen e néctar, e criando um microclima de abrigo para esse exército do bem, através da agrofloresta, policultivo, plantas de cobertura ou manejo de plantas espontâneas”, diz a entomologista, ou cientista que estuda insetos.

Esta linha de pesquisa foca plantas que são chamarizes dos inimigos naturais, que não deixam as pragas se proliferarem na lavoura principal, o que está de acordo com os princípios da agricultura regenerativa, que é reduzir ao máximo o uso de insumos químicos.

Não por acaso, a agenda de Madelaine está concorridíssima, com convites para palestras em todo Brasil, com destaque para regiões cafeeiras, e no exterior. A pesquisadora tem parceria com a Nespresso, que vem disseminando com os produtores parceiros do Cerrado Mineiro as aléias de biodiversidade, florestas lineares que consistem em plantio de ruas de árvores e arbustos a cada 40 metros ou 11 ruas do café (o que não impede a mecanização).

Nestes corredores, são cultivadas árvores como ingá e fedegoso e arbustos como fedegosino e erva baleeira, que atraem os inimigos naturais da broca-do-café e bicho-mineiro, pragas do café, e ainda fixam nitrogênio no solo, caso das leguminosas.

Recentemente, a pesquisadora firmou uma parceria com a Cooxupé, maior cooperativa de café do mundo, que está iniciando um programa de cafeicultura regenerativa nas suas três principais regiões de atuação: Sul de Minas, Cerrado e Matas de Minas.

“A ideia é aplicar as práticas de agricultura regenerativa e fazer estudos científicos para avaliar produtividade e qualidade, redução de uso de inseticida ou de outros produtos”, diz Natália Carr, gerente de ESG da Cooxupé.

Ao contrário do “controle biológico tradicional”, que consiste na liberação de macrobiológicos (insetos) ou utilização de microbiológicos (microorganismos, como fungos, bactérias e vírus) para controle de pragas e doenças, o controle biológico conservativo busca criar um ecossistema equilibrado, através da diversificação de plantio.

Marcelo Urtado

Produtor de referência em cafeicultura regenerativa. O agrônomo é dono da Fazenda Três Meninas, em Monte Carmelo (MG), grande vitrine dessa nova maneira de produzir.

“Muitos não gostam da terminologia agricultura regenerativa, eu mesmo prefiro o termo agricultura baseada em processos. Mas é um conceito que o mercado adotou e demanda”, diz o produtor, que preside o Consórcio Cerrado das Águas (CCA), uma plataforma multi-stakeholder que promove a resiliência climática ao estimular produtores a preservar bacias hidrográficas, a partir da formação de corredores ecológicos.

Marcelo Urtado, produtor de café na Fazenda Três Meninas, em Minas Gerais

Desde que comprou a Fazenda Três Meninas, em 2016, a família vem promovendo uma verdadeira transformação, com base em três pilares:

1) Solo sempre coberto. O cafeicultor mantém as entrelinhas do cafezal com plantas de coberturas, que são escolhidas de acordo com a estação do ano e com a finalidade almejada. “O nabo forrageiro, por exemplo, tem raízes grossas e ajudam a descompactar o solo, facilitando a infiltração da água da chuva”, explica Urtado. E há outro ganho: quando roçadas, essas plantas se transformam em adubos verdes, diminuindo a demanda por fertilizantes nitrogenados, os vilões das emissões de gases do efeito estufa.

2) Plantio de árvores. Arborista no meio urbano, Urtado encheu a fazenda de árvores. Hibiscos e casuarinas fazem a cerca externa e funcionam como uma barreira de proteção, que impede as aplicações de defensivos dos vizinhos chegarem ao cafezal. O cafeicultor plantou árvores nativas que formam bosques em vários setores da fazenda, que hoje tem 40 hectares de cafezais, com uma produtividade média de 54 sacas de café por hectare.

Não satisfeito, há quatro anos, suprimiu 9% dos cafezais para instalar corredores de biodiversidade a cada 11 ruas do cafezal. “A biodiversidade é a base de uma agricultura equilibrada, porque nela é difícil uma praga se destacar”, diz Urtado, lembrando que as árvores formam um microclima ideal para produção cafeeira.

3) Uso de biológicos. O produtor pode criar um habitat para o desenvolvimento dos inimigos naturais da cultura principal com o plantio de linhas de biodiversidade ou usar produtos biológicos comerciais.

“Uma agricultura climaticamente inteligente é dar condições da natureza nos ajudar. Isso não é poesia, isso é ciência.”

Segundo Urtado, existem muitas técnicas e práticas para auxiliar os insetos a combater as pragas do café e melhorar a estrutura do solo. “É trabalhar com a natureza”, diz o presidente do CCA, que dissemina as novas técnicas para produtores de café e de hortifruti do Cerrado.

Victor Monseff de Almeida Campos

Engenheiro agrônomo com MBA em manejo de solos pela Esalq, Campos é presidente da Nuffield no Brasil, uma rede internacional de networking do agronegócio no mundo. Tem mestrado em Economia e Ciência do Café pela Universidade de Trieste e é CEO da 3R Ribersolo, um laboratório de solos pioneiro em análises biológicas.

“O Brasil tem solos pobres, ácidos e fundos e, em muitas culturas, predomina o sequeiro. A grande maioria dos produtores faz análises de solo de no máximo 40 centímetros, mas entender a fertilidade do solo em profundidade e a parte biológica faz toda a diferença”, diz Campos, que também é produtor de café e de abacate.

Victor Monseff de Almeida Campos, CEO da Ribersolo e especialista em agricultura regenerativa

Mas colocar tudo isso em prática não é simples. “Para compreender a saúde do solo em clima tropical temos que parar de analisar cada elemento isoladamente e interpretar o sistema como um todo”, diz Campos.

Analisando os vencedores do Desafio Nacional da Produtividade do Comitê Estratégico Soja Brasil (CESB), Campos destaca como fator comum entre eles plantas com um bom crescimento radicular, o que está relacionado com construção de perfil de solo em profundidade, que confere resiliência climática em tempos de aquecimento global, mas demanda análises mais profundas, abaixo dos 40 centímetros geralmente amostrados.

Pela Nuffield, Campos visitou 16 países para entender a metodologia de análise de saúde de solo e nutrição de plantas, mas a realidade era muito diferente do Brasil, um país de clima tropical. No entanto, ficou evidente a necessidade de bioanálise (BioAs), que é uma avaliação não só da parte físico e química, mas também da parte biológica do solo.

Na 3R Ribersolo, a equipe do laboratório faz uma análise que indica: 1) Argila, que está associada à capacidade do solo reter água; 2) Enzimas, que medem a atividade biológica do solo; 3) Matéria orgânica, relacionada à quantidade de carbono no solo.

Estes dados vão para uma plataforma da Embrapa, onde são processados por um algoritmo que apresenta os resultados. “Quando destrinchamos o laudo, entendemos a atividade enzimática que indica a saúde do solo, porque – se há matéria orgânica e alta atividade enzimática – quer dizer que o solo tem comida e está ciclando nutrientes”, explica.

Em suas palestras, Campos costuma citar a fala do professor e pesquisador em agrometeorologia da Esalq, Paulo Sentelhas (1964 – 2021), que dizia que 50% do resultado da lavoura está atrelado ao clima. No entanto, o manejo pode driblar as intempéries climáticas. “Com manejo ruim, mesmo sob condições climáticas favoráveis, a produtividade não melhora”, dizia Sentelhas. “Mas, quanto melhor for o manejo agrícola, maior a produtividade, independente do clima”, argumentava.

Eduardo Sampaio

“Cresci cheirando café no terreiro e no bule”, diz o engenheiro agrônomo formado pela Esalq, que foi extensionista da Cooxupé e depois trabalhou na General Foods, atual Jacobs Douwe Egberts (JDE), em diversos programas. De 2003 a 2017, representou o programa de sustentabilidade da UTZ no Brasil e hoje dá assistência em países da América Latina, África e Ásia, além de ser consultor da Plataforma Global do Café e do CocoaAction, duas iniciativas que promovem a sustentabilidade na cadeia do café e cacau no Brasil, respectivamente.

Eduardo Sampaio, agrônomo e especialista em agricultura regenerativa

Com uma ênfase técnica, Sampaio sempre esteve ligado à fertilidade do solo, nutrição, conexões com o mercado e metodologias de aprendizado. Atualmente, junto com a equipe da Plataforma Global do Café, lidera um trabalho coletivo de Harmonização do Conceito, Práticas e Indicadores de Cafeicultura Regenerativa.

“Trouxemos 7 elementos que, se tomados da forma proposta, criam um ambiente facilitador para o equilíbrio, para a fertilidade balanceada em profundidade no meio das ruas do café e na região das raízes, porque têm muitos cafezais no Brasil cujo perfil do solo lá embaixo é pobre”, diz Sampaio.  “Isso não cria condição para o enraizamento. E é na ponta das raízes que se faz a troca de exudados, onde os micro-organismos e hormônios mandam sinais para as plantas ficarem mais resilientes”, explica.

Aumentar a matéria orgânica é outro aspecto fundamental para ter um solo vivo, rico em micro-organismos. Depois vem a introdução de bioinsumos. A inclusão desses elementos biológicos (micro-organismos) para melhorar a questão físico-química do solo é incontestável, mas não se trata de algo novo.

“Na década de 50 e 60, tivemos grandes professores, que foram os pioneiros em trabalhar estes conceitos e vislumbrar o futuro: Elke Jurandy Bran Nogueira Cardoso, da Esalq, e Joana Döbereiner, da UFRRJ, estudavam biologia do solo, Ana Primavesi, da UFSM, foi um ícone nos estudos de agroecologia, e Edmar Kiehl, da Esalq, especialista em matéria orgânica, foi o criador do adubo organomineral”, explica Sampaio.

Adepto de uma boa prosa, ele consegue promover pontes entre profissionais de várias linhas: agricultura convencional, agricultura regenerativa, agricultura orgânica, agroecologia.

“A agricultura regenerativa é multidisciplinar, é um conjunto de práticas para aliviar o intensivismo e tornar as lavouras mais resilientes.”

O trabalho da Plataforma Global do Café de Harmonização do Conceito, Práticas e Indicadores de Cafeicultura Regenerativa continua e envolve membros e parceiros da cadeia. “A gente entende que as cooperativas, traders e extensão rural são fundamentais para dar escala à agricultura regenerativa disseminando práticas validadas pela ciência”, diz o agrônomo, ressaltando que o objetivo da Plataforma é promover a prosperidade de 1 milhão de pequenos cafeicultores no mundo até 2030, 95 mil deles no Brasil.

Rodrigo Alessio

Engenheiro agrônomo pela UFSC, é vice-presidente da Federação Brasileira do Sistema de Plantio Direto por Santa Catarina, membro do Grupo Associado de Agricultura Sustentável (GAAS) e produtor de soja, milho e trigo em 1.000 hectares em Faxinal dos Guedes (SC). A história da sua família com a sustentabilidade começou com seu pai, que adquiriu terras na década de 1970 e quase quebrou com o sistema convencional, que revolvia muita a terra.

“Em 79, meu pai conheceu o Nonô [Manuel Henrique] Pereira, um dos pais do plantio direto. Ele passou sete dias na fazenda dele, voltou ‘convertido’ e começou a viabilizar nossas áreas”, diz Alessio, lembrando que os princípios do plantio direto são o revolvimento mínimo do solo, manter o solo sempre coberto e rotação de culturas.

Hoje, ele e o irmão fazem a semeadura sem usar o glifosato – herbicida mais usado para dessecar a cultura anterior antes do novo plantio. “Não usamos o glifosato porque é uma molécula sistêmica, muito eficiente, que desce para raízes e inibe parcialmente a interação dos micro-organismos, que estão associados à nutrição da planta”, diz o agrônomo.
Em vez disso, eles utilizam um rolo faca na frente do trator, que vai tombando as plantas de cobertura e, atrás, vem a semeadora plantando.

Convidado para compartilhar sua história por todo Brasil, o agricultor defende que não há agricultura regenerativa sem os princípios do plantio direto associados à diversidade de espécies, luz solar que viabiliza a fotossíntese, administração de produtos biológicos e insumos regionais, que têm uma pegada de carbono muito inferior aos importados.

“Ao invés de eu usar um cloreto de potássio que vem da Rússia e tem um monte de externalidades negativas, eu uso um pó de rocha que tenha o potássio como elemento mais expressivo”, diz. “Os micro-organismos vão gostar mais de trabalhar com essa rocha do que com o cloro”, acrescenta.

Na propriedade, a família faz a multiplicação on-farm de micro-organismos isolados, como o Bacillus subtilis e as pseudomonas, que controlam a ferrugem da soja. “Também fazemos a multiplicação das comunidades de micro-organismos benéficos da mata nativa, fungos bactérias, protozoários e nematóides, que já estão adaptados ao local. Multiplicamos em compostos e extraímos um chá, diz.

“Ao invés de usar os ‘cidas’, fungicidas, inseticidas, pulverizamos estas comunidades biológicas na lavoura, que vão atuar inibindo os patógenos das plantas principais e ajudando no rearranjo da biologia do solo”, explica.

Este tipo de manejo promove a construção da fertilidade do solo em profundidade e o uso racional de insumos, o que contribui para o equilíbrio do ecossistema. “Nesta lógica de agroecossistemas, à medida que você intensifica os processos regenerativos, você aumenta a capacidade do seu talhão se autorregular, sendo mais resistentes à praga e às mudanças climáticas”, finaliza.