
Com muitas aventuras no currículo, incluindo várias improváveis ressurreições, o etanol brasileiro chegou aos 50 anos saudável e fazendo planos.
No horizonte estão metas ambiciosas, como replicar a fórmula do programa nos combustíveis de aviação e marítimo, além de outros biocombustíveis do presente e do futuro, como biodiesel, biometano, etanol de segunda geração e hidrogênio verde.
O SAF é a cereja do bolo. O combustível sustentável de aviação — com várias rotas de produção, uma delas a partir do etanol — é tido como um dos passaportes do Brasil para o desenvolvimento no século XXI.
Até a Petrobras está entrando na onda. Em outubro, a presidente da estatal, Magda Chambriard, disse que em 2026 vai aplicar US$ 4,3 bilhões — de um total de US$ 16,5 bilhões em investimentos — em combustíveis renováveis.
Mandatos no Brasil e no exterior
Em 2017, no embalo das pressões globais por descarbonização desde o Acordo de Paris, dois anos antes, o RenovaBio foi criado para fomentar a produção de etanol, biodiesel e biometano. Sua principal ferramenta é a certificação dos produtores com créditos de descarbonização, os CBIOs.
Depois, em 2024, a Lei do Combustível do Futuro fixou metas de descarbonização para transportes e mobilidade, com estímulos à produção de biocombustíveis e um cronograma de aumento dos mandatos de etanol na gasolina e de biodiesel no diesel.

Juntas, as inovações criaram a infraestrutura regulatória e um instrumento de indução da demanda que é necessário, considerando que 85% dos carros no País são flex, mas só 30% dos motoristas abastecem com etanol.
O primeiro estágio do roadmap legal, o E30, a mistura de 30% de etanol na gasolina, entrou em vigor em agosto — no lugar do E27 vigente desde 2015.
Para suportar o almejado crescimento, o setor sucroenergético investe em inovação. Luiz Antonio Dias Paes, diretor comercial do Centro de Tecnologia Canavieira, diz que três “alavancas” devem assegurar o aumento da produtividade da cana.
“Primeiro, a genética, para torná-la mais produtiva e adaptada a diferentes ambientes. Depois, a biotecnologia, com foco em proteção contra pragas. E a mudança na forma de plantio, do caule para a semente.”
Plínio Nastari, fundador da Datagro, pontua que é possível promover esse aumento de produção sem desmatar. “O Brasil substitui 45 bilhões de litros de gasolina usando 5 milhões de hectares de cana. Temos entre 70 milhões e 80 milhões de hectares de pastagens com potencial de conversão rápida”, diz.
O prognóstico global também é positivo. Segundo um estudo do Instituto MBCBrasil realizado pela LCA Consultores, a demanda por etanol deve crescer 2,4 vezes até 2040.
Os programas nacionais de descarbonização vitaminam essas projeções. Como a Fit For 55, na União Europeia, para reduzir emissões em 55% até 2030, e o Inflation Reduction Act, nos Estados Unidos, que propôs um fomento à energia limpa.
Além disso, alguns países criaram mandatos de mistura obrigatória, como Índia, Japão, Indonésia e Filipinas.
E, na recente COP30, Brasil, Itália, Japão e Índia lançaram uma iniciativa para quadruplicar o uso global de biocombustíveis até 2035.
Revezes
Existem também fatores que sinalizam atrapalhar a expansão do etanol.
As mudanças climáticas são o primeiro. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), elas causam desertificação e reduções nas janelas de plantio e ameaçam a produção de matérias-primas para biocombustíveis.

A adaptação e a mitigação desses efeitos demandam da ciência inovações em sementes, solo e bioinsumos que, em alguns casos, ainda estão em desenvolvimento.
Além disso, há as questões geopolíticas, como a lei europeia antidesmatamento — as exigências de rastreabilidade foram adiadas, mas, segundo especialistas, devem se espalhar para outros importadores da pauta brasileira, incluindo biocombustíveis.
Ou como o tarifaço americano, que sobrou duas vezes para o etanol: o biocombustível não entrou na lista de isenções, e, em uma barganha para livrar outros produtos da sobretaxa, o governo deve abrir o RenovaBio aos exportadores americanos.
Adriano Pires, fundador do CBIE (Centro Brasileiro de Infraestrutura), destaca outro risco recorrente na trajetória do etanol, o de insegurança. Ele lembra que os mandatos já tiveram as entradas em vigor adiadas, por vezes para conter a inflação. E pergunta: “Se o petróleo cair e o etanol subir, o governo vai manter o aumento programado?”
O frenesi do etanol de milho
Um vetor relevante do crescimento recente e futuro do etanol é o etanol de milho.
O salto na última década foi vertiginoso: 85 mil litros em 2014/15, contra 8,2 milhões de litros na safra 2024/25, segundo a Unem (União Nacional do Etanol de Milho).
E, para a safra 2033/24, a projeção é de 16,63 milhões de litros. Nastari, da Datagro, prevê ainda mais: 24,7 bilhões de litros.
Para chegar lá, os players do setor já anunciaram investimentos de R$ 40 bilhões. O número de usinas pode mais que dobrar até 2030, das atuais 24 para potenciais 56.

O biocombustível a partir do milho tem como subproduto o DDG, item de alto valor proteico utilizado na ração animal. Com isso, a cadeia energética é integrada à da proteína, com ganho econômico e ambiental, diz Luis Augusto Barbosa Cortez, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Unicamp.
“O gado no Brasil é 85% extensivo. O DDG do etanol de milho permite confinar, como os EUA fazem, melhorando nossas emissões e liberando terra para a agricultura.”
Pires, do CBIE, levanta um alerta: se não houver uma política cuidadosa, pode sobrar etanol: “O governo está dando juros a 7% para plantar milho para etanol. Mas a mistura de 30% é suficiente para a demanda?”.
Já Gonçalo Pereira, coordenador do Laboratório de Genômica e BioEnergia da Unicamp, não teme uma bolha. “Um eventual excedente de etanol pode ser convertido em um monte de outras coisas, inclusive plásticos.”
Etanol, elétrico ou híbrido?
Outra discussão que se impõe na projeção do futuro do etanol são os carros elétricos.
O País vem oferecendo isenções fiscais para a adoção, seja em créditos para a instalação de fábricas ou em benefícios para motoristas, como descontos de IPVA.
Com isso, a venda de eletrificados superou pela primeira vez 500 mil unidades neste ano. Até 2040, segundo a MBCBrasil, deverão ser 17,4 milhões de veículos, 27% da frota, exigindo investimentos de R$ 25 bilhões em infraestrutura de recarga de bateria.
O Brasil deveria investir em elétricos quando tem o etanol? As respostas divergem.
Pires, do CBIE, acredita que não. “Dar incentivo para os chineses produzirem carro elétrico aqui complica. O etanol é muito mais limpo.”

Luciano Rodrigues, diretor de economia e inteligência setorial da Unica (União da Indústria de Cana-de-açúcar), vai na mesma linha: “A política pública não pode eleger campeões, deve priorizar as tecnologias que entreguem menos emissão”.
Já Henry Joseph Júnior, diretor técnico da Anfavea, acredita que ambos vão conviver: “Por isso as montadoras estão oferecendo os híbridos flex. O futuro é eclético”.
O estudo da MBCBrasil estima que os híbridos-flex serão 72% da frota até 2040.
“A eletrificação não tem volta, o motor elétrico é mais eficiente do que o a combustão. Mas o ideal para o Brasil é o híbrido. Estamos nessa direção”, reforça Nastari.
SAF e marítimo, o sonho grande
Para alçar voos grandiosos nos próximos 50 anos, o etanol brasileiro mira duas novas fronteiras na vanguarda da bioenergia: o combustível marítimo e o de aviação, o SAF.
O marítimo avança com mais rapidez, explica Cortez, da Unicamp: “As seguradoras ainda não deixam um avião voar com SAF. No avião, o importante é ser seguro. Já o marítimo não tem essa restrição; se o navio parar em alto-mar, alguém resgata. O importante é ser barato”.
A lista de itens que podem virar SAF é farta e inclui cana, milho, soja, macaúba, agave, eucalipto, óleo de cozinha reciclado, gordura animal, resíduos orgânicos e até CO2 industrial ou da atmosfera (este mapa online explica cada um deles).
As principais rotas de produção são a HEFA, a partir de óleos vegetais, a ATJ, partindo do etanol, e a Fischer-Tropsch (FT), baseada em hidrogênio verde e biomassas.
O grande vetor da demanda por SAF é a meta de zerar emissões até 2050, alinhada entre a IATA, a entidade global das companhias aéreas, e a Organização da Aviação Civil Internacional. Mas até aqui, a produção global é baixa, de estimados 2 bilhões de litros em 2024 — menos de 1% do total consumido na aviação comercial naquele ano.

O SAF pode entregar entre 40% e 70% da redução almejada, explica Simone Souza, diretora regional de Sustentabilidade para América Latina e Caribe da Boeing. Com a Embraer, a empresa apoiou o primeiro roadmap para SAF no Brasil, em 2014, em um projeto da Unicamp. E, recentemente, realizou o primeiro voo-teste transatlântico.
“O Brasil está bem-posicionado para liderar a transição. Mas oportunidade não garante oferta, só indica o caminho, e aí vêm os desafios para concretizar”, afirma Souza.
O maior dilema por trás do SAF, ela diz, é o custo de produção estimado em três vezes mais que o querosene (fóssil) de aviação que ele propõe substituir.
“Hoje, 40% do custo da operação das companhias aéreas é combustível. Alterações mínimas no preço já refletem de forma significativa. Por isso, é essencial que haja incentivos fiscais e previsibilidade, é todo um ecossistema que precisa girar.”
Rodrigues, da Unica, endossa essa leitura. “Energia renovável é um exemplo de situação em que só o livre mercado não resolve. Ninguém quer pagar individualmente pelo que é coletivo.”
“Proálcool 3.0” para SAF
Em 14 de novembro, aniversário de 50 anos do Proálcool, o secretário de Petróleo, Gás Natural e Bicombustíveis do Ministério de Minas e Energia, Renato Dutra, lançou na COP30 o Programa Nacional de Combustível Sustentável de Aviação (ProBioQAV).
A regulamentação estava prevista na Lei do Combustível do Futuro, e o governo abriu a minuta do decreto para consulta pública por 45 dias.
A escolha da data foi deliberada, disse Dutra: ele defende “um novo Proálcool” para replicar aquela mobilização e fazer do País um fornecedor global de SAF.
“O desafio é casar a demanda que já existe com a oferta por vir. As estabilidades regulatória e jurídica, aliadas ao fomento tributário, vão criar as condições para viabilizar esse mercado.”
Segundo ele, o governo tem convicção de que a escala vai reduzir o custo.
Uma biorrefinaria chamada Terra
Entre sortes e reveses, Pereira, da Unicamp, vê um imenso potencial no horizonte.
“Vivemos um momento brilhante. Somos o único país no mundo com tanto sol, água e solo bom. E politicamente estável, com respeito a contrato. Só nesta semana devo ter falado com umas dez empresas sobre projetos de biocombustíveis. Não quero ser exagerado, mas é difícil não se empolgar, é superlativo o que temos diante de nós.”
Ele exalta o ganho socioeconômico, lembrando que “cada unidade de energia fóssil gera um emprego, versus 42 na bioenergia”. E sonha alto:
“O etanol é uma fonte líquida de energia via luz do Sol. Começa na cana ou no milho, passa pela biomassa e chega no agave, que dá no sertão. O Sol envia seis milhões de vezes mais energia do que o mundo precisa. Se fizermos o dever de casa, o planeta vira uma grande biorefinaria.”
*
Esta é a última reportagem de uma série especial de The AgriBiz sobre os 50 anos do Proálcool. Clique a seguir para ler o primeiro episódio, o segundo e o terceiro.