Opinião

Chegou a vez dos frigoríficos

"Voltará a faltar picanha em um futuro não muito distante. Nós estimamos que isso acontecerá ao redor de 2026", escreve Lygia Pimentel

“Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice. Foi a época da fé, foi a época da incredulidade. Foi a estação da luz, foi a estação das trevas. Foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero. Tínhamos tudo diante de nós, não havia nada antes de nós. Todos íamos direto para o céu, todos íamos direto para o outro lado.”

Quem já ouviu falar do escritor Charles Dickens conhece essas linhas, consideradas como um dos melhores inícios de romance já escritos. “Um conto de duas cidades”, publicado em 1859, é uma história que se passa entre Londres e Paris no período da Revolução Francesa. Escrita no auge do Império Britânico, a obra compara as respostas antagônicas de França e Inglaterra aos desafios econômicos surgidos no final do século XVIII.

É o que temos diante do mercado pecuário: historicamente o pior dos tempos para os produtores, o melhor dos tempos para a indústria frigorífica.

Bem, talvez a situação não seja tão dicotômica assim, especialmente diante do câmbio ao redor de R$ 4,95 e a acomodação das exportações para a China, mas certamente os frigoríficos gozam de um momento mais favorável do que o pecuarista, afinal, o custo com a matéria-prima recuou, em média, 30% desde o início do ano.

Reflexo da forte alta dos preços pecuários entre 2020 e 2022, que levou o preço da arroba paulista a sair de R$ 160,00 por arroba em outubro de 2019 para o seu pico de R$ 350,00 por arroba em abril de 2022, os investimentos promovidos pelo pecuarista no auge do mercado agora cobram o seu preço sobre aumento produtivo. Já falamos sobre a dinâmica do ciclo da pecuária neste artigo.

O volume de animais abatidos no Brasil entre janeiro e junho subiu 8,4% em relação ao mesmo período de 2022, segundo o IBGE. Já considerando sazonalidade e redução de investimentos nas operações de confinamento para o segundo semestre, a projeção conservadora é de um aumento de 6,7% para a produção de carne bovina brasileira em 2023, o que levaria a uma oferta de 9,6 milhões de toneladas a ser absorvida tanto domesticamente como pelos nossos clientes internacionais.

Internamente, há enormes desafios: o poder de compra das classes C, D e E, que voltou a patamares vistos em 2010, é um deles. Apesar de desemprego em 8% e IPCA em níveis civilizados (4% no acumulado dos últimos 12 meses), é importante compreender que esses são os estratos da população que mais apresentam elasticidade em seu consumo, visto que em caso de aperto no orçamento acabam rapidamente migrando para proteínas mais baratas.

Assim, um rápido olhar para o número de cestas básicas adquiridas com um salário mínimo evidencia níveis de poder de compra tão baixos quanto em 2005 para a população mais dependente do salário mínimo.

Além disso, o arrocho de emprego e de renda vivido durante o período de pandemia elevou sobremaneira o nível de endividamento do brasileiro, que agora se vê às voltas com uma fatia maior do orçamento comprometida com as dívidas.

Oferta maior e demanda interna sensível têm feito com que o aumento da disponibilidade doméstica de carne bovina seja acompanhado por quedas de preços no varejo. Ou seja, o consumo de carne bovina está aumentando em reflexo à maior disponibilidade, mas apenas dentro de uma acomodação do produto em preços mais baixos.

De acordo com o Instituto de Economia Agrícola (IEA), o preço da carne ao varejo paulista já acumula queda de 8% em 2023, mas nada comparado ao preço da matéria-prima.

Um dos motivos é o fato de não adiantar aumentar demasiadamente a oferta no varejo, visto que a carne é produto perecível e que uma sobreoferta para fins apenas de escoamento poderia implodir as margens de comercialização. O efeito, portanto, é o de pressão forte sobre a arroba do boi gordo, com oferta folgada aos frigoríficos.

Isso faz com que o mico fique na mão do pecuarista neste momento, uma transferência de margem dentro da dinâmica da cadeia em relação ao cenário da temporada 2020/21.

A indústria, por sua vez, tem recebido essa transferência de margem, o que é sentido pelo termômetro da diferença entre o preço do boi gordo e da carne no atacado (que aqui chamarei de spread). A carcaça costuma ser vendida abaixo do preço do boi gordo, de modo que a diferença é preenchida pela venda do couro, sebo, miúdos, subprodutos do abate e pelo processamento da carne, que em muitas unidades já é desossada.

Ocorre que quanto mais próxima estiver a carcaça da arroba, menor o spread e mais fácil fica para a indústria recuperar o investimento. Obviamente, isso não é acompanhado de custos operacionais, amortização e juros, indicadores disponíveis apenas para as empresas de capital aberto e que são conhecidos após o período de avaliação, mas o spread é um bom indicador do que ocorre com as margens operacionais de mercado doméstico.

Bem, o spread caiu de -6,05% no ano passado para os atuais -0,09% de média ponderada, sendo que após a forte queda de 12,14% visualizada para o boi gordo em agosto, ele subiu para impressionantes 8,8%.

As exportações, em contrapartida, têm sofrido um pouco com a acomodação de China nos atuais patamares (que são historicamente altos, mas cansaram um pouco de viver de explosões e rompantes). O volume acumulado de embarques no ano cai 5,4%.

E, como não poderia ser diferente, a oferta abundante de animais no Brasil influenciou o mercado exportador como um todo. O Brasil tem hoje a arroba mais barata do mundo, ao passo que esse comportamento fez com que o preço da tonelada exportada caísse 20,9%, influenciando inclusive outros países exportadores, como a Argentina e o Paraguai, por exemplo. O Brasil exporta aproximadamente 30% da sua produção.

Assim, o que vemos é uma transferência de margens entre elos da cadeia em pleno curso, como resultado do aumento sistêmico da oferta de animais e investimentos passados. O consumo mais fraco atrapalha a todos, indústria e fornecedores, mas certamente quem tende a amargar resultados piores neste momento é o produtor, que não tem escolha a não ser manter os animais quando a indústria não tem interesse na compra ou está com estoques muito cheios.

O que nos reforça a ideia de que voltará a faltar picanha em um futuro não muito distante. Nós estimamos que isso acontecerá ao redor de 2026. Enquanto isso, o que se vê de um lado será o melhor dos tempos, enquanto o outro viverá o pior, como disse Dickens.

*Lygia Pimentel é médica veterinária, economista e CEO da Agrifatto