
Uma cadeia produtiva que não tem opção. Produzir ou produzir, de forma ininterrupta, 365 dias por ano. Assim é o universo do leite, um setor fundamental para alimentar a população — mas ainda pouco conhecido na Faria Lima, apesar da revolução que vem experimentando.
A transformação da cadeia do leite no Brasil, aliás, se assemelha a diversas indústrias e setores que já são acompanhados pelo mercado financeiro. Sem medo de errar, o leite brasileiro merece um olhar mais profundo dos investidores.
Saí com essa constatação depois de dois dias imerso na primeira edição do Milk Pro Summit, um espaço que reuniu os principais atores que vem transformando o negócio do leite: produtores, laticínios, indústrias de tecnologia e a academia para debater os desafios e oportunidades no setor.
As discussões fizeram ainda mais sentido porque estão lastreadas na realidade, evidenciando uma reconfiguração relevante. Nos últimos dez anos, o número de produtores de leite no Brasil caiu, mas a produção se manteve em 35 bilhões de litros exatamente porque os maiores produtores estão cada vez melhores, investindo em tecnologia.
Os números do Rio Grande do Sul, um Estado conhecido pela relevância na produção leiteira, falam por si. Desde 2015, o número de produtores desabou, saindo de 84 mil para pouco mais de 20 mil no ano passado, conforme os dados da Emater/RS apresentados por Valter Galan, da MilkPoint, em um dos painéis sobre a evolução do mercado nacional.
Mesmo com essa redução impressionante, a produção gaúcha se manteve mais ou menos estável, em 4 bilhões de litros de leite por ano. Isso só foi possível porque a produtividade dos que continuam na atividade vem aumentando, indicando um caminho para o futuro.
Como o mercado é soberano, criar valor de forma contínua é chave para sobreviver e criar diferenciação. Ganho de escala, consolidação, aumento de tecnologia, novas estratégias de go-to-market e verticalização são alavancas de criação de valor sendo adotadas na cadeia do leite.
Estas alavancas precisam conversar com o papel da pecuária (corte e leite) na discussão das mudanças climáticas. Longe de ser um vilão, a pecuária pode ser um aliado contra o aquecimento global.
Todos esses assuntos fizeram parte do Milk Pro Summit. Conhecer mais sobre esse debate é necessário para todos aqueles que atuam e trabalham pelo desenvolvimento do agronegócio brasileiro.
Abaixo, resumo alguns das principais questões.
Consolidação: Os maiores puxam a fila do crescimento
Embora o mercado tenha crescido em média 2% ao ano desde 2001, os 100 maiores produtores quintuplicaram a produção de leite, enquanto a captação total de leite formal País aumentou apenas 92%. Atualmente, este grupo seleto de produtores representa 4,74% do total de leite formal produzido no Brasil em 2024. Pode parecer pouco, mas isso vem se transformando rapidamente.
Tal fato escancara uma verdade desconfortável e uma oportunidade: o leite está se consolidando. Esta consolidação é uma alavanca chave para destravar valor. O ganho de escala se traduz em resultados operacionais de 30% para grandes produtores, e viabiliza mais investimentos.
Tecnologia: Alavanca de produtividade e sustentabilidade
Os produtores que estão na vanguarda têm algo em comum: investem pesado em tecnologia com domínio do sistema de produção. Mas não estamos falando só de sensores e softwares — o salto vem do uso inteligente de ferramentas integradas, como:
- Melhoria genética, com foco em produtividade;
- Gestão de saúde e bem-estar animal, garantindo longevidade e eficiência;
- Controle zootécnico de precisão, otimizando recursos e decisões;
- Automação na ordenha e na alimentação, reduzindo custos e melhorando qualidade do leite.
Essas tecnologias aumentam a produção e a qualidade do produto (que recebe prêmio financeiro pela produção de sólidos — gordura e proteína), aumentando a margem. Mais do que isso, constroem um modelo de negócio mais resiliente frente às pressões de custo, clima e mercado, inerentes a qualquer atividade agrícola.
Verticalização: A era das marcas próprias no leite
Um outro movimento que chamou atenção no Summit foi a verticalização. Alguns produtores de médio e grande porte vão além da porteira — criando marcas próprias, embalando o leite e vendendo direto para o consumidor final.
Essa estratégia não é só uma jogada de marketing. Ela representa um novo posicionamento competitivo, onde o produtor deixa de ser apenas fornecedor de matéria-prima e passa a controlar mais etapas da cadeia — capturando valor, diferenciando-se e criando vínculo com o consumidor. Obviamente que este movimento demanda investimentos e novas competências. FairLife nos Estados Unidos e fazendas como Letti A2 e Atilatte vão além e criaram espaços com experiências de consumo, dando ainda mais valor emocional as suas marcas.
Num mundo onde confiança e rastreabilidade são ativos valiosos, essa estratégia tem mérito mercadológico.
A cadeia pode contribuir com a questão climática
A pecuária brasileira, especialmente a bovina (aqui não somente a leiteira), está no centro das discussões sobre aquecimento global. Enquanto abastece mercados e movimenta a economia, também é uma fonte relevante de emissão de gases de efeito estufa (GEE) no país.
Por outro lado, a atividade pode adotar uma série de estratégias na criação de uma agenda positiva, tais como o manejo sustentável de pastagens, a integração lavoura-pecuária-floresta (iLPF), a melhoria da eficiência alimentar, dentre outras. Cabe ressaltar que estas ações não apenas reduzem as emissões de GEE, mas também aumentam a produtividade e a rentabilidade da atividade, incluindo o crédito de carbono.
Aqui, cabe um destaque. Durante o Milk Pro Summit, foi apresentado um documentário que traz uma discussão factual e bastante didática sobre o tema. “World Without Cows” merece e deve ser assistido por todos, assim que chegar nas plataformas de streaming — torço para que o quanto antes.
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Em suma, a cadeia do leite merece um olhar mais aprofundado. Apesar dos desafios, como qualquer cadeia do agronegócio brasileiro, vem passando por uma série de revoluções ao mesmo tempo que pode trazer uma série de oportunidades, para investidores e para o País.
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Nelson Bechara é sócio da Noon Capital, investidor e conselheiro de empresas