Como a Cemvita quer fazer dos resíduos do agro um negócio | Crédito: Divulgação

O agro gera muitos resíduos. E a Cemvita quer fazer deles um grande negócio.

Com a tese de aplicar biotecnologia para transformar subprodutos em matérias-primas, a empresa se define como “a peça que faltava no quebra-cabeças da bioeconomia circular”.

Sua proposta é explorar as integrações da agropecuária com o setor industrial para reaproveitar suas sobras, com ganhos de produtividade e de sustentabilidade. Para isso, a empresa utiliza microrganismos criados em laboratório. Por meio deles, despejos podem virar biofertilizantes, rações animais e óleos capazes de gerar biocombustíveis, entre outros.

“A Cemvita quer acomodar todo o resíduo das agroindústrias no Brasil. O potencial de agregar valor para coisas que hoje são descartadas — muitas vezes com passivos ambientais — ou vendidas a valor baixo é imenso”, explica Luciano Zamberlan, vice-presidente de operações.

Além da produtividade, a tese tem um pilar ambiental. A circularidade pode ter papel fundamental para ajudar o País e o mundo a diminuírem emissões ao mesmo tempo em que aumentam a produção de alimentos para dar conta da crescente população global.

“Nossa proposta não resolve todos os problemas, mas é uma solução complementar para ajudar a descarbonização”, explica Fernando Borba, vice-presidente de Estratégia e Desenvolvimento de Negócios.

“Na atual transição energética, não há uma bala de prata, é preciso combinar várias tecnologias. A Cemvita pode otimizar a descarbonização, não no campo, mas na etapa posterior, do processamento dos bens agrícolas”, complementa Zamberlan.

O primeiro alvo da empresa são os resíduos dos biocombustíveis, uma agroindústria que passa por um momento de pujança no Brasil.

Mas essas sobras não são as únicas na mira. A startup quer extrapolar sua plataforma para outras cadeias, da pecuária aos bioinsumos. “O biodiesel é o precursor, mas estamos analisando outros resíduos. Já temos prospecções nas áreas sucroalcooleira e de laticínios, além de frutas, etanol de milho e biogás”, explica Borba.

Do zero ao SAF

Há três meses à frente da empresa no Brasil, Zamberlan tem passagens por gigantes de alimentos e agroindústria, como Ajinomoto e Raízen, com foco em biotecnologia e experiência em levantar projetos do zero, ou quase.

“Está sendo assim na Cemvita: pegar um conceito e uma pesquisa em estágio laboratorial e, com base neles, estruturar uma operação.”

O primeiro desafio do executivo será colocar de pé a pioneira fábrica no País, vizinha à da Be8, em Passo Fundo (RS), um projeto de US$ 70 milhões (R$ 370,6 milhões).

A Cemvita também assinou um termo de engajamento com o governo do Rio Grande do Sul para aplicar um total ainda maior, de US$ 100 milhões (R$ 529,4 milhões), por meio da Invest RS — a agência gaúcha de promoção de investimentos fornece inteligência de mercado, promoção comercial e serviços para exportadores.

A perspectiva de conclusão da planta é no primeiro trimestre de 2028. Uma vez em operação, ela vai transformar 100% da glicerina bruta gerada pela fabricante gaúcha de biocombustíveis em um óleo — que a empresa patenteou com o nome FermOil.

Esse óleo será matéria-prima para produzir combustível sustentável para aviação, com ganhos de produtividade e ambiental.

Conhecido por SAF, o substituto do querosene fóssil é a aposta do setor para atingir suas metas de descarbonização. E pode ser produzido com várias matérias-primas, de gordura animal e óleo de cozinha usado até culturas como macaúba, soja e milho.

No caso do FermOil produzido pela Cemvita a partir da glicerina, a conversão em SAF se dá pela rota HEFA, baseada em óleos vegetais. Outras rotas usam outras matérias-primas, como etanol, óleos animais e hidrogênio verde.

Segundo a empresa, o FermOil é 5,2 vezes mais eficiente em reduzir a pegada de carbono do que o SAF feito a partir do óleo fruto do esmagamento da soja, e pode gerar um ganho de cerca de US$ 4,14 (R$ 21,9) por litro na mesma comparação.

A Cemvita tem desde 2022 uma parceria com a petroleira Occidental Petroleum e a United Airlines, ambas americanas, para desenvolver sua produção de SAF.

A companhia aérea — que é investidora na empresa por meio de seu CVC, o United Airlines Ventures — também fechou um acordo para comprar 3,7 bilhões de litros de SAF feito de FermOil até 2042. Isso equivale a quase 600 mil voos de duas horas em um Airbus A320.

A fábrica no Brasil será a primeira no mundo a usar essa tecnologia de conversão, diz Zamberlan. A capacidade de processamento será de 150 toneladas de glicerina bruta por dia — a empresa não divulga o quanto isso vai gerar de óleo ou de SAF.

Banco de micróbios

A lista de resíduos possíveis de serem convertidos em matérias-primas ou produtos é imensa, diretamente ligada às regulações, e em constante evolução, diz Zamberlan.

“Para escolher quais focar, acompanhamos as certificações de fabricação de produtos. No caso do SAF, as regras da Corsia (o programa de redução de emissões da Organização da Aviação Civil Internacional). Também monitoramos as legislações nacionais, como da União Europeia e do Brasil, ou estaduais, no caso da Califórnia.”

Existe ainda a possibilidade de submeter novos resíduos à aprovação desses órgãos, ele explica. “Finalizado o filtro regulatório, avaliamos a viabilidade técnico-econômica para escolher quais desenvolver em escala.”

Segundo Zamberlan, a Cemvita tem uma base com mais de 500 resíduos certificados, cada qual com seu microrganismo correspondente — a empresa tem um banco de micróbios na sede nos Estados Unidos.

O Brasil como ensaio

A Cemvita está iniciando sua atuação pelo Brasil — nos Estados Unidos, a operação ainda está em estágio laboratorial. A ideia é fazer da operação local uma plataforma para as ambições globais.

“Nossa biotecnologia precisa ser tropicalizada. Não só nos aspectos administrativos e fiscais, mas também na disponibilidade de estoques de matérias-primas e nas certificações ambientais. E tudo isso com um baixo custo operacional”, diz Zamberlan.

Para isso, a empresa vem montando uma equipe que deve ficar em torno de 35 funcionários. Borba foi um dos primeiros reforços. Com experiência em empresas como Braskem e Yara, ele é há um ano vice-presidente de Estratégia e Desenvolvimento de Negócios.

O executivo explica que a Cemvita foi criada em 2017 em Houston, no Texas. Desde então, fez investimentos que permitiram escalar pesquisas em soluções industriais.

Em 2021, a startup teve uma rodada seed da qual participaram o United Airlines Ventures e o Oxy Low Carbon Ventures. No mesmo ano, fez uma rodada Série A envolvendo de novo o Oxy e outros fundos de venture capital, como Climate Capital, Mitsubishi Heavy Industries e Sumitomo Corporation.

Em 2024, veio uma rodada Série B com follow-ons dos investidores anteriores. A Cemvita informa já ter captado US$ 55 milhões (R$ 291,2 milhões) em venture capital, e atualmente prepara uma rodada Série C.

Nessa trajetória, a empresa já gerou duas spin-offs. Uma delas é a Endolith, focada em mineração — mais especificamente, em aplicar micróbios no subterrâneo para recuperar minérios valiosos, como lítio e cobre. A outra é a Eclipse Energy, que cria microrganismos para capturar hidrogênio em poços de petróleo desativados.

No Brasil desde o fim de 2024, a empresa tem interagido com entidades públicas de pesquisa. Por exemplo, o sistema Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro) e o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais.

Também foi uma das dez escolhidas no programa Invest in Brasil Net-Zero Solutions, da ApexBrasil e do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás. A iniciativa visa acelerar a entrada no mercado brasileiro de empresas estrangeiras com soluções inovadoras para reduzir a pegada de carbono na indústria.