Bioenergia

No Brasil, biocombustíveis e alimentos andam juntos

Particularidades da agricultura brasileira, como múltiplas safras, tecnologia e saldo de terras regeneráveis, tornaram o dilema “food or fuel” superado no País

O Brasil tem um imenso potencial para continuar escalando a produção de etanol de milho sem competir com a de alimentos — e sem desmatamento. Isso é possível graças a uma característica singular da agricultura brasileira: podemos cultivar de duas a três safras no mesmo ano, potencializando o uso da terra.

Cada hectare no Brasil produz em média 10,5 toneladas de grãos, ante 7 a 8,5 toneladas nos Estados Unidos, onde só há uma safra por ano, segundo estudo da Agroicone. Na produção de etanol, predomina o milho safrinha, plantado na mesma terra ocupada pela soja na primeira safra — o que também explica por que o dilema entre biocombustíveis e alimentos não faz sentido no Brasil.

Como resultado, o consumo de milho para conversão em etanol fica abaixo de 18% no País, contra 40% nos EUA, segundo Bruno Alves, head de Relações Governamentais da consultoria Meridiana e ex-diretor de Relações Governamentais e de Sustentabilidade da Unem (União Nacional do Etanol de Milho).

E há muito espaço para a expansão do milho em lavouras de soja. Segundo a Agroicone, no Centro-Oeste, principal região produtora do etanol de milho, a safrinha ainda ocupa apenas metade da área da soja.

“Nos EUA, o etanol usa milho de primeira safra. Se expandirem, vai ser sobre outras culturas. Já no Brasil, a cana historicamente expande em áreas de pastagem. E, no milho, o crescimento é em áreas com soja”, sintetiza Luciane Bachion, sócia da Agroicone e uma das autoras do artigo “Como o milho vem contribuindo para ampliar a produção de energia sem comprometer a segurança alimentar?”.

Em um relatório recente, o JP Morgan estimou que 60% da área de soja no País ainda não tenha milho safrinha. “Em uma conta conservadora, o Brasil poderia produzir mais 90 milhões de toneladas de milho sem desmatamento”, concluiu o banco.

Segundo um estudo da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), o saldo de lavouras de soja que ainda não têm milho safrinha é de 16,6 milhões de hectares, o equivalente ao território do Acre, ou a 1,5 vezes o tamanho de Portugal.

Se ocupadas com milho na segunda safra, a capacidade de produção de etanol teria um adicional de 38 bilhões de litros por ano — volume maior do que a produção total de etanol no Brasil, estimada em 36,8 bilhões de litros pela Conab nesta safra, considerando cana e milho como matéria-prima.

Sem falar nas terras regeneráveis, que não estão aptas a receber plantações, mas podem vir a estar. São cerca de 110 milhões de hectares, segundo a Agroicone, dos quais entre 28 milhões e 36 milhões têm mais potencial para a produção de grãos — outras fontes falam em até 170 milhões de hectares.

Integração energia-alimento

O exemplo brasileiro é particular também graças a um nível razoável de adoção de tecnologias — embora abaixo de EUA e União Europeia — e ao uso de biomassa, fonte de energia muito menos poluente do que o carvão que move as usinas nos EUA.

Também joga a favor a integração entre cana e milho em usinas desenvolvidas para alternar entre as matérias-primas, diz Souza, da USP: “A cana não produz o ano todo. Com o milho, que pode ser estocado, chegamos a uma atividade contínua.”

Essa “combinação perfeita entre terra, clima e tecnologia criou um sistema integrado de produção de energia e alimentos”, sintetiza Rafael Abud, CEO da FS, empresa pioneira na produção de etanol de milho no Brasil.

“Em 2014, o Mato Grosso produzia 16 milhões de toneladas de milho. Neste ano, chegou a 57 milhões. E muito disso veio da indústria dando liquidez ao produtor. O etanol de milho foi um grande vetor do aumento da produção agrícola no estado”, diz.

Abud lembra que a produção gera um coproduto relevante: o DDG (Dried Distillers Grains), que reduz o consumo de grãos na ração animal e que as usinas fornecem para produtores de bovinos, suínos e aves, com ganhos de produtividade na engorda.

Se o Brasil alimenta 1,8 bilhão de pessoas no mundo com proteína animal, nas contas de Gonçalo Pereira, coordenador do Laboratório de Genômica e BioEnergia da Unicamp, é em parte graças ao DDG gerado pela indústria de biocombustíveis, ele diz.

“Biofuel for food”

Para os especialistas, a indústria de etanol de milho também trouxe benefícios socioeconômicos ao País. “A produção integrada de alimentos e biocombustíveis eleva o poder aquisitivo, melhora a infraestrutura e moderniza a agricultura”, defende Souza, da USP.

Pereira, da Unicamp, completa: “Para comprar alimento, precisa ter dinheiro, e, para isso, precisa de emprego. A intensidade de emprego dos biocombustíveis é incrível. Basta ver Ribeirão Preto, que era decadente após o café, e veio a cana e mudou tudo”.

Para ele, o lema correto não é mais “food or fuel”, mas “biofuel for food” (biocombustíveis para alimento).

Um estudo liderado por Angelo Gurgel, professor adjunto da Fundação Getúlio Vargas, com participação de Sofia Arantes, da Agroicone, deu números a esse efeito. Conforme a indústria cresceu no Centro-Oeste, o consumo de alimentos na região aumentou 0,68%. Os preços de energia caíram até 1,5%, e os preços de alimentos caíram 0,21%, contra uma alta de 0,02% no País.

“Não é coincidência que o País tenha passado a ter excedente de alimento em paralelo com a produção de biocombustíveis. Está tudo conectado”, conclui Pereira.

A fome vem da má distribuição de renda

Os especialistas também descartam qualquer tipo de relação entre a insegurança alimentar — que, no Brasil, aflige mais de 14 milhões de pessoas, segundo o mais recente Mapa da Fome — e os biocombustíveis.

Nas contas de Souza, da USP, menos de 13 milhões de hectares no mundo servem à produção de biocombustíveis — contra 1,5 bilhão de hectares para alimentos e 3 bilhões para pastagens.

Bachion, da Agroicone, lembra que, no Brasil, conforme a demanda para etanol cresceu, aumentaram as exportações e a oferta para consumo humano ou animal. “Não estamos deixando faltar em uma ponta, a expansão ocorre conjuntamente. E sem impacto no preço interno do milho, que nos últimos anos caiu.”

Glauber Silveira, diretor da Abramilho (Associação Brasileira dos Produtores de Milho e Sorgo), dá números ao excedente: “Temos um consumo interno de 90 milhões de toneladas de milho, e uma sobra de entre 35 milhões e 50 milhões de toneladas por ano.”

Alves, da consultoria Meridiana, lembra que a fome está ligada à má distribuição de renda. “A Islândia enfrenta desafios extremos de soberania alimentar: praticamente não produz alimentos, mas ninguém passa fome. Já o Brasil produz muito mais do que consome — parte desse volume, inclusive, é destinada à nutrição animal, que gera proteína para o mundo inteiro. O problema central da fome não está na produção, mas na desigualdade de renda e no acesso aos alimentos.”