Bioenergia

No boom do etanol de milho, biomassa é o gargalo

A indústria de etanol de milho pode quase dobrar a demanda por biomassa em dois anos. Quem não se planejar pode ter problemas

Floresta de eucalipto no Brasil | Crédito: Schutterstock

O rápido crescimento da indústria de etanol de milho no Brasil tem um gargalo potencial: a oferta de biomassa para geração de energia nas usinas planejadas para os próximos anos.

Segundo a Unem (União Nacional do Etanol de Milho), o número de unidades produtoras de etanol de milho deve mais que dobrar na próxima década, passando de 24 para 56, chegando a novos estados e regiões. Caso a oferta de biomassa não acompanhe o ritmo dos projetos, algumas empresas podem ter problemas.

A indústria de etanol de milho demanda quase 19 milhões de metros cúbicos de cavacos de madeira por ano, ou 34% da produção de lenha do Brasil, segundo um estudo aprofundado sobre o setor elaborado recentemente pelo JP Morgan.

Se a produção de etanol de milho subir dos atuais 8,5 bilhões de litros para 15,5 bilhões até o final de 2026 (cenário-base do banco), seriam necessários mais 16 milhões de metros cúbicos de cavacos de madeira. Em outras palavras, o setor de etanol de milho pode quase dobrar a demanda por biomassa em dois anos.

Em algumas regiões do País, uma relativa desestruturação da cadeia de fornecimento já tem gerado situações “inadmissíveis” de entrega de lenha ou cavaco a 600 quilômetros de distância, segundo Glauber Silveira, diretor da Abramilho. O raio máximo ideal é de 200 quilômetros.

“Quando você pega o preço do frete, por exemplo, no Mato Grosso, em alguns casos está saindo mais caro do que a própria biomassa. Vai ficando inviável. Creio que em dois anos a gente pode ter um problema”, alerta Silveira.

Planejar é preciso

No mesmo estudo, o JPMorgan ressalta a necessidade de planejamento para o suprimento de biomassa.

Do plantio ao primeiro corte, o eucalipto requer de seis a sete anos, enquanto uma usina de etanol de milho pode ser construída em dois anos, aproximadamente. Ou seja, para evitar o risco de desabastecimento, o planejamento da oferta de biomassa deve começar com pelo menos cinco anos de antecedência.

Algumas empresas estão bem posicionadas. A FS, por exemplo, tem mais de 80 mil hectares de base florestal própria em Mato Grosso, onde estão concentradas as suas usinas. “Temos autossuficiência para rodar todas as nossas unidades com florestas plantadas mais o nosso plano de expansão”, disse o CEO da empresa, Rafael Abud, em entrevista ao The AgriBiz neste mês.

A FS tem, inclusive, uma empresa só de ativos florestais, a FS Florestal, que em março um CRA (Certificado de Recebíveis do Agronegócio) de R$ 500 milhões. A companhia também vem testando alternativas ao eucalipto, como o bambu, como fonte de energia.

A Enebra, especializada em eucalipto, levantou R$ 100 milhões em um CRA lastreado no contrato para abastecer a usina que a 3tentos está construindo em Porto Alegre do Norte (MT) — a empresa também fornece para a Inpasa, a líder no setor.

Também há modelos de terceirização, com empresas como a ComBio não apenas fornecendo a biomassa, mas assumindo a operação das caldeiras.

Além disso, parte das novas usinas adotam modelo híbrido — ou “flex” — no qual alternam matérias-primas, principalmente cana-de-açúcar e milho, com o bagaço da primeira servindo de biomassa. Será assim na usina da São Martinho em Quirinópolis (GO), após um investimento de R$ 1,1 bilhão anunciado no início do mês.

Para o JPMorgan, o desafio no suprimento da biomassa é, inclusive, um fator chave que impulsiona a implementação das usinas flex.

A importância das certificações

As pesquisadoras Luciane Bachion e Sofia Arantes, da Agroicone, dizem que há muito espaço para ampliar a produção de eucalipto sem avançar sobre a vegetação nativa.

“No etanol de milho, a maior parte da biomassa vem de eucalipto, que historicamente expande sobre áreas de pastagem degradada”, diz Bachion.

Guilherme Nolasco, presidente da Unem (União Nacional do Etanol de Milho), reforça essa visão. Segundo ele, “foram incorporadas terras marginais consolidadas, mais arenosas e de baixa produtividade”.

Arantes lembra que as certificações estrangeiras exigidas na exportação do etanol, com due dilligences da procedência ambiental, evitam que o aumento da demanda gere desmatamento.

“Hoje em dia, ao escolher um fornecedor, uma trade ou um frigorífico precisam checar no Ibama para assegurar que nem a matéria-prima nem a biomassa vieram de desmatamento. E as grandes de biocombustíveis são severas na análise ambiental. Não querem nem que seja mais barato, pois o estresse pode ser enorme”, observa Silveira, da Abramilho.

A Agroicone estima que haja 110 milhões de hectares de terras regeneráveis no País. Para as pesquisadoras, esse saldo, combinado com os movimentos recentes da indústria e as inovações científicas, serão suficientes para evitar um cenário de escassez.

Fontes alternativas

Em outra frente, academia e empresas pesquisam fontes alternativas e microrganismos capazes de converter plantas — e até lixo — em biomassa.

“Em consequência da demanda apertada por cavaco, as usinas estão começando a testar opções, como resíduos agroindustriais e bambu”, diz Arantes, da Agroicone.

Algumas têm vantagens, como ciclos produtivos mais curtos — caso do bambu, que cresce em três a quatro anos, contra cinco a sete anos no eucalipto.

Em certos casos, a motivação é a falta de utilidade — por exemplo, o caroço de algodão, um resíduo da cotonicultura que pode ser usado como biomassa. Em outros casos, o ponto a favor é a ampla disponibilidade nos biomas brasileiros.

“A macaúba é uma palmeira nativa com alto rendimento de óleo que pode ser cultivada em áreas degradadas”, diz Felipe Cammarata, sócio da Bain & Company, em um relatório recente da consultoria sobre biocombustíveis.

No laboratório, a conta fecha, explica Gonçalo Pereira, coordenador do Laboratório de Genômica e BioEnergia da Unicamp.

“Toda a energia do mundo vem do sol, com raríssimas exceções da geotérmica e do urânio. A gente recebe 5,5 bilhões de exajoules de energia. Desses, 3,8 bilhões de exajoules chegam na superfície. E disso, a humanidade usa apenas 600 exajoules. Ou seja, somos incompetentes em converter a luz do sol em energia”, ele diz.

A biomassa, afirma, é onde a natureza estoca a energia solar. “Os fótons fazem a fotossíntese, que cria glicose e gera biomassa. A biomassa é uma bateria de carbono.”

Pereira atua em diversas frentes. Por exemplo, desenvolvendo microrganismos que melhoram a conversão das biomassas em etanol e biometano. Ou criando formas de gerar biogás a partir do lixo, como na Dinamarca.

Ele também tenta desenvolver biomassa baseada na palma e no agave, nativo do sertão — que, lembra Pereira, tem mais de 100 milhões de hectares. As plantas podem servir de fonte de energia ou serem convertidas em biocombustíveis.

A iniciativa está sendo testada no programa Brave, uma parceria entre Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial), Unicamp, Senai e Climatec, com investimento de R$ 100 milhões da Shell.