
O biocombustível brasileiro já derrotou muitos fantasmas em sua trajetória. A lista parte dos diversos obstáculos superados pelo Proálcool desde os anos 1970 e inclui, mais recentemente, a suposta competição — refutada por cientistas e especialistas de mercado — entre a produção de etanol de milho e a de alimentos.
A geopolítica sempre se destacou entre esses desafios, e não é diferente com a atual onda de desenvolvimento do etanol de milho no País.
A cadeia de biocombustíveis ambiciona se beneficiar de recentes mandatos no Brasil e no exterior fixando misturas obrigatórias de etanol na gasolina, ao encontro das pressões globais por descarbonização.
Mas, ao mesmo tempo, especialistas e players da indústria nacional temem que o assunto vire moeda de troca no âmbito das negociações com os Estados Unidos e a União Europeia.
Por aqui, a onda se favorece das características da frota — mais de 75% dos veículos são “flex”, rodando com gasolina ou etanol. Também joga a favor um crescimento na demanda puxado por compromissos climáticos assumidos pelo governo.
A principal contribuição vem do cronograma de mandatos previsto na Lei do Combustível do Futuro (14.993/2024). O primeiro foi o E30, que aumentou a mistura obrigatória de etanol na gasolina de 27% para 30% em agosto.
Se as diretrizes já aprovadas pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), ainda sem datas estabelecidas, forem seguidas, o Brasil pode chegar ao E35 em breve. As condições de investimento e de capacidade já foram atendidas, de acordo com Guilherme Nolasco, presidente da Unem (União Nacional do Etanol de Milho).
Mandatos no exterior
Regulamentações ambientais em outros países também vêm turbinando a demanda. Entre elas, se destacam a Fit For 55, na União Europeia, um pacote para reduzir as emissões em 55% até 2030, e o Inflation Reduction Act, nos EUA, que propôs um fomento à energia limpa — hoje na mira do presidente Donald Trump.
A situação é replicada em misturas obrigatórias fixadas recentemente por outros países — a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) mantém um mapa interativo que permite consultar os mandatos pelo mundo.
A Índia, por exemplo, propôs e já alcançou uma meta de 20% de etanol na gasolina. O Japão está expandindo seu mandato para 10% até 2030 e para 20% até 2040. Indonésia e Filipinas também têm mandatos. E a China estuda uma mescla obrigatória de 10%.
Segundo um estudo da Bain & Company, as medidas geram previsões de escassez, com um déficit de biocombustíveis — etanol, biodiesel e biometano — estimado em 45% até 2040. Nesse contexto, diz o estudo, “o Brasil tem potencial para suprir parte relevante da demanda mundial”.
As armas geopolíticas
A discussão sobre o etanol brasileiro sempre teve um componente geopolítico, mas isso se intensificou nos anos 1990. “Foi quando a União Europeia adotou restrições sob argumentos de sustentabilidade que, na verdade, eram barreiras protecionistas”, diz uma fonte próxima do mercado de milho.
Rafael Abud, CEO da FS, reforça essa visão. A suposta falta de sustentabilidade do etanol brasileiro “é um tema incubado e exportado pela Europa, e parte da falta de compreensão do que é a agricultura tropical”, ele disse recentemente em entrevista ao videocast Raiz do Negócio.
Mas, segundo os especialistas, essas restrições acabaram tendo um efeito positivo. Ao pressionar o Brasil, as exigências — principalmente as dos europeus — desembocaram em infraestrutura e regulamentos, incluindo rastreabilidade, boas práticas e projetos robustos, como o RenovaBio.
A tal ponto que, segundo a mesma fonte que prefere não se identificar, os europeus já ensaiam retirar as críticas à suposta falta de sustentabilidade do etanol brasileiro e voltar ao mercado, de olho em atender às próprias metas de descarbonização.
O biocombustível nacional também corre o risco de virar moeda de troca no contexto da guerra tarifária promovida pelos EUA — como parece ter ocorrido há dois meses com o Japão, pressionado a comprar o etanol dos americanos para evitar uma tarifa mais alta.
Os impactos da frustração de exportações, por outro lado, são limitados para as empresas que contavam com elas, como Raízen e São Martinho. Eram entre 600 mil e 800 mil metros cúbicos por ano para os EUA antes do tarifaço.
Não era um mercado tão grande que não possa ser substituído, diz Glauber Silveira, diretor da Abramilho (Associação Brasileira dos Produtores de Milho e Sorgo). “Em seis meses, se ajusta. Mas no curto prazo prejudica, pois afeta os investimentos, e pode impactar a produção para aviação civil”, ele pondera.
SAF e combustível marinho
As acusações mais recentes contra o etanol brasileiro têm um pano de fundo: está em jogo quem serão os protagonistas do combustível de aviação sustentável (SAF) e do etanol para o transporte marítimo.
O País vem buscando interlocução — o assunto foi discutido com o governo chinês após a guerra tarifária. E, em uma vitória para o Brasil, a Organização de Aviação Civil Internacional deu aval em julho para a produção de SAF no País.
A Embraer anunciou na semana passada que vai intensificar os estudos sobre SAF 100% renovável, sem derivados fósseis. Segundo a empresa, os resultados ajudarão a avaliar os impactos técnicos e a contribuir com o debate.
A China fixou uma meta de 3% de mistura de SAF em cinco anos, o que implica um volume adicional de 46 milhões de toneladas por ano. A Índia também restabeleceu uma meta de SAF, de 1% até 2027, dobrando para 2% até 2028.
Quase 70% das emissões no setor aéreo podem ser evitadas com combustíveis não-fósseis. Garantir que o etanol brasileiro seja aceito para SAF é a disputa do momento, diz uma fonte que pede sigilo: “Como as nossas soluções vão ser classificadas? Esse processo pode nos posicionar bem ou nos colocar em situação delicada. É decisivo”.