Crédito

Está em RJ? Agora, a renegociação com Sicredi e Sicoob é separada

STJ abre caminho para que as cooperativas se protejam do risco da RJ, o que lhes dará maior poder de barganha nas renegociações de dívidas

Sicredi

Sicredi e Sicoob. Sicoob e Sicredi. A ordem dos fatores pode até mudar, mas as duas cooperativas de crédito estão, invariavelmente, entre as maiores credoras de dez entre dez recuperações judiciais de produtores rurais. Ou estavam. Se depender da Justiça — e da letra fria da lei — essa exposição está prestes a mudar, fortalecendo as cooperativas na competição com os bancos tradicionais.

Em uma decisão inédita, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) entendeu que os empréstimos firmados entre cooperativas de crédito e seus associados não se submetem aos efeitos de uma recuperação judicial, figurando como créditos extraconcursais.

A decisão da corte ocorreu no âmbito de um recurso especial envolvendo Grupo Baurular, do interior de São Paulo, que atua nos ramos de transporte de cargas e varejo de construção, está em recuperação judicial e acumula dívidas com agências do Sicredi e Sicoob.

O entendimento do STJ ainda não é uma jurisprudência, mas abre caminho para que as cooperativas de crédito se protejam do risco da recuperação judicial, o que lhes dará maior poder de barganha nas renegociações de dívidas com produtores e empresas em dificuldades financeiras.

A decisão despertou a atenção dos envolvidos com recuperação judicial por ser a primeira vez que o tribunal se posiciona sobre esse assunto desde a reforma da lei de falências, realizada em 2020.

O texto já excluía, desde então, os chamados “atos cooperativos” de processos de recuperação judicial — mas somente agora os casos que colocam o texto à prova vão chegando às instâncias superiores do judiciário.

Na visão de advogados ouvidos por The AgriBiz, embora ainda seja uma decisão isolada, o caso está longe de passar despercebido. Por ser um entendimento do STJ, tribunais regionais tendem a seguir o argumento ao julgar demais casos semelhantes.

“O que a decisão do STJ fez foi cristalizar e confirmar uma mudança que ocorreu na lei de falências de 2020 para deixar de fora esses créditos de cooperativas. Para quem buscava reestruturar esses créditos via recuperação judicial, resta a negociação formal. A decisão tem um impacto substancial”, crava Stefano Motta, sócio do Mattos Filho. 

Considerando o tamanho que o agronegócio ocupa nas carteiras das cooperativas de crédito, o efeito dessa decisão deve ser acompanhado de perto. Atualmente, o Sicoob tem uma carteira de crédito de R$ 82 bilhões no agronegócio. No Sicredi, maior cooperativa de crédito ligada ao agronegócio, a carteira setorial passa dos R$ 100 bilhões. 

O que fica fora da RJ?

A decisão do STJ segue, na prática, o que consta na nova lei de falências (lei nº 14.112, de 2020). Não à toa, antes de chegar ao STJ, o processo já tinha passado pelo TJ-SP (o Tribunal de Justiça de São Paulo), que havia adotado o mesmo entendimento. 

“A partir de agora, essa discussão deve ganhar mais contornos nas instâncias inferiores, uma vez que os primeiros casos começaram a chegar ao STJ recentemente. Essa decisão não deve desestabilizar os casos já julgados, mas deve trazer um impacto daqui para frente nos processos”, diz Carolina Iwamoto, sócia do Pinheiro Neto. 

A lei prevê, no artigo 6º, que ficam de fora da recuperação judicial os “contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados”. 

E o que são os tais atos cooperativos? Trata-se de um conceito da lei das cooperativas — uma lei da década de 1970 — que resume essa relação como os serviços envolvidos na relação entre as cooperativas e seus associados.

Tendo em vista que, para tomar crédito em uma cooperativa, é necessário se tornar um associado, não há uma maneira de ter uma relação financeira com essas instituições fora do que é considerado um ato cooperativo. 

“Empréstimos, aplicações financeiras, tudo que está na resolução número 5.051 do Banco Central e é prestado pelas instituições financeiras cooperativas aos seus associados é um ato cooperativo”, explica Ana Paula Andrade Ramos, assessora jurídica da OCB (Organização das Cooperativas Brasileiras), entidade que representa essa classe em Brasília.

A entidade, na época da reformulação da lei, promoveu esforços para que a exceção à recuperação judicial fosse colocada dentro do novo texto. Do lado da OCB, o argumento para isso é o de que os associados se reúnem de forma coletiva nesse tipo de associação — e, se um deles não honra com as operações contratadas, está prejudicando toda a coletividade. 

“O cooperativismo não quer ser um mau desfecho para as recuperações judiciais dos cooperados. Mas, por outro lado, há responsabilidades envolvidas. Uma RJ milionária abala toda a economia da região e, inclusive, a cooperativa, que precisa ter mecanismos para proteger os outros cooperados e ser capaz de atendê-los nas suas necessidades de crédito. Passa pela defesa do quadro social dela”, ressalta Ramos.

As divergências

Nos últimos anos, as cooperativas de crédito ganharam um espaço significativo no mercado brasileiro. Crescendo em dois dígitos altos nos últimos anos , Sicredi e Sicoob têm, cada um, mais de R$ 350 bilhões em ativos.

O ganho de espaço dessas instituições ao longo dos últimos anos — principalmente no agronegócio — preocupa quem acompanha processos ligados a produtores rurais de perto. Para esses advogados, a decisão do STJ pode trazer, ao longo do tempo, um esvaziamento do propósito das recuperações judiciais.

“Nesse caso específico, o ato cooperado é uma pequena parte da dívida, mas, o que vai acontecer se 100% do crédito de uma empresa estiver com cooperativas? E os bancos que emprestaram no risco e estão sujeitos à RJ, enquanto as cooperativas não?”, questiona Euclides Ribeiro, sócio da ERS Consultoria e Advocacia, um dos escritórios conhecidos pelas RJs no agro.

São dúvidas que extrapolam o universo dos escritórios regionais. Para Fabiana Solano, sócia do Felsberg Advogados, a situação é ainda pior no agro pela quantidade de exceções que afetam o setor, previstas na nova lei. 

Olhando para os pontos que afetam o setor, estão fora das RJs: dívidas contraídas três anos antes do ajuizamento da recuperação judicial, desde que tenham sido feitas com o fim de adquirir propriedades rurais, além das tradicionais alienações fiduciárias e as CPRs com liquidação física. 

Na prática, a visão é que a lei de RJ está sendo sistematicamente esvaziada. Nesse cenário, os credores extraconcursais acabam firmando acordos individuais com a devedora porque reconhecem que o pagamento dos seus créditos não cabe no fluxo de caixa da companhia. 

“O acordo bilateral é a melhor solução para esses credores, porque viabiliza o pagamento pela devedora, ainda que alongado e com deságio, e ao mesmo tempo desonera o balanço dos bancos com créditos inadimplidos, além de evitar custos com litígios”, explica a sócia do Felsberg.

José Afonso, sócio do VBSO, vai pela mesma linha. “Com as mudanças todas nas RJs, o produtor tem de praticamente fazer duas reestruturações. Tem de pensar se vale a pena pedir recuperação judicial, se não vale a pena renegociar de outra forma, fazer uma recuperação extrajudicial e sentar com credores-chave”, resume.