BELÉM (PA) Um trajeto de dez minutos de barco separa as discussões diplomáticas da COP30 de uma realidade que pede por soluções práticas. Na turística Ilha do Combu, falta acesso amplo a água potável. Uma ironia para a população de 3 mil habitantes que vive à beira do rio Guamá.

O rio não é só a “estrada” por meio da qual a população se locomove. A água que banha a quarta maior ilha da região insular de Belém é usada para atividades diárias, como tomar banho e lavar roupa, depois de passar por um tratamento com cloro. O processo é caseiro: os moradores misturam cloro à água do rio e esperam a decantação para usá-la.

Para beber, cozinhar e lavar alimentos, a população depende da entrega de galões de vinte litros, que custam R$ 5 cada. Não há uma periodicidade definida das entregas, dependendo do serviço de moradores da região.

Houve avanços recentes. Nas últimas semanas, alguns estabelecimentos comerciais foram contemplados com a instalação de cisternas para a captação de água da chuva, por meio do programa Água Para Todos.

A iniciativa, que começou em janeiro de 2025, é resultado de uma parceria entre a Semas (Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Clima e Sustentabilidade), o Ideflor-Bio (Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Pará) e a empresa New Fortress Energy.

“Isso foi o que nos salvou aqui, porque recentemente o rapaz que entregava a água potável interrompeu o serviço. Com a cisterna, que é bem moderna, nós conseguimos cozinhar e garantir os serviços aqui”, diz Prazeres Quaresma dos Santos, proprietária do primeiro restaurante da ilha, o Saldosa Maloca, e produtora de açaí.

Para vender a fruta, aliás, também é preciso muita água. O açaí precisa ser lavado algumas vezes antes de ser vendido. Cada 30 quilos de açaí exigem pelo menos 60 litros de água — o que evidencia a importância do acesso à água potável para a população ribeirinha, que tem mais da metade da renda vinda do fruto.

Além do açaí, Dona Prazeres cultiva cacau. Recentemente, deu um passo além e desenvolveu um chocolate ao leite, fabricado na vizinhança. Mais especificamente, na fábrica de Izete Costa, mais conhecida como Dona Nena, uma famosa fabricante de chocolates da Ilha do Combu. Sua propriedade é uma parada quase obrigatória para os turistas — a maioria estrangeiros.

Para a produção do chocolate, a fábrica conta com duas cisternas, uma mais antiga, fornecida pelo Rotary Club (do qual a propriedade é membro), e outra recém-instalada pela prefeitura.

“Isso nos ajudou muito”, conta Viviane Quaresma, filha de dona Nena que ajuda a tocar o negócio. Antes de receber a cisterna, a família de Nena fazia como todos os outros habitantes do Combu: precisava torcer para o vendedor de água potável passar ou atravessar o rio para comprar o item básico em Belém.

Infelizmente, poucos tiveram essa sorte. Outros ainda enfrentam, de forma mais severa, os impactos das mudanças climáticas no dia-a-dia. Pescadores queixam-se que os camarões sumiram do rio Guamá — o que eles atribuem ao aumento da temperatura da água.

As mulheres fortes do Combu

Em meio às dificuldades dos moradores de Combu, as histórias vitoriosas de dona Prazeres e dona Nena merecem ser contadas. Ambas são adeptas do modelo de produção agroflorestal e buscam influenciar outros produtores da ilha a fazer o mesmo.

Dona Nena, que hoje vende chocolates tree to bar para todo o País, compra cacau de outros produtores do Combu para complementar a colheita de seu sítio de sete hectares, onde há cerca de 4 mil pés de cacau. Os fornecedores, no entanto, precisam seguir o modelo adotado por Nena.

Em seu sítio, as árvores de cupuaçu atuam como uma proteção aos cacaueiros contra a vassoura-de-bruxa. “Ambos são infestados pela vassoura-de-bruxa, mas se tem cupuaçu na propriedade, a doença prefere atacar o cupuaçu em vez do cacau”, explica Dirceu dos Anjos, guia turístico que trabalha na propriedade. Nenhum tipo de químico é usado na propriedade; o manejo é a arma para controlar pragas e doenças.

Na parte industrial, que na verdade é quase artesanal, a produção de chocolate é de 12 quilos por dia — e dona Nena não quer aumentar. “Nós sempre quisemos manter a nossa essência, não abrimos mão de fazer os produtos com o nosso padrão de qualidade”, conta Viviane, a filha de Dona Nena.

Filha de agricultores da ilha, Nena chegou a trabalhar como agente comunitária por dez anos, antes de resgatar as raízes na produção de cacau, no início dos anos 2000. Mas a meta sempre foi produzir o chocolate.

No início, usava um pilão de madeira para quebrar as amêndoas torradas e descascadas. Ao longo do tempo, passou a utilizar um moinho para triturar as amêndoas, o que a permitiu chegar a uma barra 100% cacau.

Para fazer a produção escalar e fabricar bombons a partir do chocolate, Nena pediu ajuda à dona Prazeres, sua sobrinha, que lhe apresentou o chef Thiago Castanho, famoso nos grandes centros pela culinária da região amazônica. A recomendação do chef? Continuar com o chocolate que já era produzido ali, sem alterações.

Dona Nena queria mais e, em 2017, se formou chocolatier, o que trouxe um salto enorme de produtividade e de escala. Hoje, a maior parte da produção é vendida na loja da família, na Ilha do Combu, além das vendas on-line para todo o Brasil.

Saldosa Maloca

A grafia, com L mesmo, é o resultado de um erro que deu certo, por assim dizer. Quando os pais de dona Prazeres resolveram montar o restaurante, encomendaram a placa com esse nome por ideia de um boêmio familiar. No dia em que a placa chegou — com o erro — o restaurante estava lotado e a família resolveu esperar o fim de semana passar para trocar.

“Todo mundo viu e virou piada, ‘só podia ser coisa de português’, porque eles eram filhos de portugueses. Eles levaram na esportiva e, no fim, quem passava de lancha por aqui ficava curioso, porque só via as palavras ‘Saldosa Maloca’ e não tinha nenhuma indicação de que era restaurante ou bar”, conta a dona do restaurante.

O Saldosa Maloca fica instalado no sítio da família na Ilha do Combu, uma propriedade de 42 hectares. Por lá, são cultivados principalmente açaí e cacau, num sistema agroflorestal, que também conta com outras frutas como cupuaçu, taperebá, manga, banana, caju, goiaba e genipapo.

“O que sempre foi a nossa tradição é o açaí. Hoje, eu não consumo nem 10% do que a gente produz, e olha que hoje a gente produz muito menos do que na época do meu pai”, conta Prazeres.

A principal carência é de tempo e de mão de obra para o manejo. Há cerca de 40 anos, na safra, eram produzidas 35 rasas por dia (uma rasa equivale a 30 quilos). Hoje, são cinco a sete rasas por dia. Cada rasa de açaí é vendida por R$ 250.

Além do sucesso, do cacau e das agroflorestas, as duas mulheres fortes do Combu também compartilham de outra semelhança. O sítio de Prazeres abriga a samaúma mais velha da Ilha do Combu, com mais de 400 anos. Nas terras de Dona Nena, está a samaúma “caçula” da ilha, com cerca de 300 anos de idade — e pelo menos 45 metros de altura. “Em época de seca, estiagem, a samaúma sacrifica uma raiz para cuidar de outras árvores que estejam próximas a ela. Por isso o pessoal a chama de rainha da floresta, mãe da floresta, por conta desse altruísmo”, explica Dirceu. Uma inspiração e tanto para as mulheres empreendedoras do Combu.