Opinião

O “vale carne” e a mania por medidas paliativas

"O programa poderia puxar o mercado da carne só temporiamente, com a consequência de pressionar as contas públicas", escreve Lygia Pimentel.

Na semana passada, uma reportagem do Estadão indicou que o governo Lula estaria estudando a criação de um voucher direcionado a famílias beneficiárias do Bolsa Família para que possam comprar até 2 quilos de carne bovina por mês. A proposta inicial é que o valor seja de R$ 35,00 por beneficiário, podendo atender até 21,06 milhões de pessoas que estão cadastradas no programa.

Considerando a média ponderada para o preço da carne bovina no varejo paulista em janeiro de 2024, de R$ 41,02 por quilo (IEA-SP), o beneficiário poderia adquirir 0,85 kg, 57,34% abaixo da ideia inicial do governo.

Com isso, uma demanda mensal adicional de 17,90 mil toneladas de carne bovina seria necessária para atender os 21,06 milhões de beneficiários do programa. Esse volume seria equivalente ao abate de 68,06 mil bovinos por mês a mais no Brasil.

No acumulado de doze meses, esse incentivo financeiro poderia estimular o consumo de 214,81 mil toneladas com abate adicional de 816,78 mil cabeças por ano, um crescimento teórico de 2,28% no número de cabeças abatidas e 2,41% da produção total de carne bovina em 2023.

Considerando o consumo per capita de carne bovina em 2023 de 35,51 quilos por habitante e o preço médio da carne bovina em R$ 41,50 por quilo, o brasileiro gastou cerca de R$ 1.473,50 com carne bovina no ano passado e, caso o projeto do “Vale Carne” seja aprovado da maneira como foi mencionado, os beneficiários teriam mais R$ 420,00 por ano para a aquisição da proteína.

No entanto, vale lembrar que o valor dos R$ 35,00 pode ser acrescido no montante total que hoje já faz parte do Bolsa Família e, caso isso ocorra, existiria a possibilidade de que o beneficiário pudesse utilizar o dinheiro como melhor conviesse, fazendo com que o aumento do poder de compra não influísse diretamente sobre a demanda de carne bovina necessariamente.

O custo do programa aos contribuintes brasileiros seria de cerca de R$ 8,84 bilhões por ano, o equivalente a 0,42% dos gastos do governo em 2023, que foi de R$ 2,13 trilhões e que teve alta de 12,50% quando comparado a 2022.

Vale ainda destacar que o governo fechou o último ano com um déficit primário de R$ 230,53 bilhões e vem prometendo déficit zero para equilibrar as contas públicas desde a posse, o que em tese dificultaria a criação de novas despesas. Em 2023, a receita liquida do governo foi de R$ 1,90 trilhão e mesmo tendo crescido 2,3% em relação a 2022, ainda assim não foi suficiente para que o déficit fosse zerado.

Assim, o programa poderia puxar o mercado da carne temporariamente, com a consequência estrutural de pressionar ainda mais as contas públicas e, consequentemente, a carga fiscal, o que faria o efeito voltar como um bumerangue sobre o poder de compra do brasileiro quando se considera uma análise plurianual.

Ainda, é importante lembrar que o mercado pecuário passar por um período de descarte de fêmeas que tende a reduzir a oferta de animais em um prazo de 12-18 meses. Além disso, os concorrentes internacionais brasileiros também encontram desafios semelhantes de abastecimento. Isso traria nova pressão positiva para o mercado da carne num futuro próximo, o que traria necessidade de ajuste positivo do voucher e/ou limitação da quantidade equivalente aos R$ 35,00.

Agora é ver se a ideia paliativa anda.

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Nota da redação: Em entrevista ao SBT após a reportagem do Estadão, o presidente Lula negou a criação do vale-carne. “Não existe essa bobagem. É uma bobagem muito grande, porque, veja, isso foi o seguinte: um cidadão entregou uma carta ao ministro, e esse ministro mandou a carta para Casa Civil e disse para a imprensa que iria estudar”, explicou Lula. “Eu ri muito quando vi a notícia do vale carne, sinceramente. Eu não acreditei que pudesse ser verdade”.