Opinião

A compra do arroz que não faltava

"Basta ligar lé com cré para constatar que as perdas da tragédia sul-grandense não justificam o volume anunciado", escreve Lygia Pimentel.

Arroz no prato

Na safra 2022/23, o Brasil produziu aproximadamente 10 milhões de toneladas de arroz, de modo que a produção gaúcha foi responsável por aproximadamente 70% desse volume. Uma alta participação na produção nacional.

Após as trágicas enchentes que castigaram o Rio Grande do Sul, o governo federal anunciou intenção de importar 1 milhão de toneladas de arroz para serem distribuídas a um preço tabelado de R$ 4,00/kg, algo que não ocorria com o produto desde a década de 1980, quando havia os “fiscais do Sarney”.

O motivo alegado para a compra recentemente anunciada: evitar especulações após as perdas ocasionadas pelas enchentes. Nas palavras do governo, “a decisão da MP foi tomada porque o alto volume de chuvas na região Sul nos últimos dias, em especial no Rio Grande do Sul, afetou a agricultura.”

Após publicação do primeiro edital que anunciava 300 mil toneladas de arroz, além de um surpreendente e ultra rápido imbróglio judicial, foram adquiridas 263 mil toneladas, que movimentou R$ 1,3 bilhão de reais. O leilão chamou muito a atenção pela natureza operacional atípica de algumas empresas participantes: a Queijo Minas, a Zafira Trading, a Icefruit e a ASR Locação de Máquinas e Veículos.

Ocorre que no momento da tragédia, 83% da área de arroz plantado no estado já estava colhida, o que fez com que as perdas fossem estimadas em 160 mil toneladas, ou 1,5% do volume produzido nacionalmente. Isso indica que tais perdas seriam facilmente aplacadas pelas habituais importações privadas ou pela própria produção brasileira advinda de outras regiões.

É importante destacar que o Brasil sempre foi exportador e importador de arroz. Em 2023, a importação foi equivalente a pouco mais de 14% da produção nacional. O anúncio do governo, que indica a intenção de comprar um volume de 1 milhão de toneladas, seria o equivalente a 10% do consumo nacional.

Outro ponto relevante é o preço alcançado pelo leilão: R$ 5,00/kg para distribuir (ou seja, sem considerar custos logísticos para sua distribuição), contra um custo já ao consumidor de R$ 5,14/kg em supermercados paulistas pesquisados pela Agrifatto em 10 de junho de 2024.

Além do preço de varejo pago pelo arroz no atacado, ainda sobrará ao contribuinte brasileiro arcar com o subsídio anunciado pelo governo. Prejuízo dobrado.

Políticas de abastecimento à parte, basta ligar lé com cré para constatar que as perdas da tragédia sul-grandense não justificam o volume anunciado. Colocar o selo do governo no saco de arroz em ano de eleição usando a catástrofe como escusa tem cheio de populismo barato, para não dizer o que não se pode dizer.

O pior é que os produtores gaúchos, também devastados pela tragédia, terão que competir deslealmente com produto subsidiado pelo dinheiro de impostos do próprio país. E esse é o ponto notoriamente preocupante: de acordo com a teoria econômica básica, para controlar o preço de uma commodity, é necessário que haja oferta desse mesmo produto. Isso significa que políticas que não tenham como objetivo aumentar a disposição do produtor em produzir, e que reflitam efetivamente em aumento produtivo, serão desastrosas para a oferta futura.

Através de uma política de baixar os preços na canetada, sem concorrência justa, será mais difícil reconstruir o setor após as perdas. E isso constitui um verdadeiro risco à produção nacional desse produto básico aos brasileiros. É bizarro demais para ser verdade, mas continua sendo verdade.

A cara dos “especialistas”, que diziam que as declarações intervencionistas do então candidato à presidência eram hiperbólicas, deve estar ardendo neste momento. Ou talvez seja ingenuidade a minha pensar assim.

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Lygia Pimentel, colunista de The AgriBiz, é médica veterinária, economista e sócia-fundadora da Agrifatto.