Memória

O dia em que entrevistei Alysson Paolinelli

A história de Paolinelli, patrono da agricultura tropical, se confunde com a história da modernização da nossa agricultura em geral e da Embrapa, em particular.

“O Brasil é o guardião da segurança alimentar do mundo”. Foi com essa frase que Alysson Paolinelli finalizou um podcast que gravei com ele em julho de 2020. Mas antes de falar sobre o legado do eterno ministro, que nos deixou hoje, faço um resgate histórico para compreender sua importância.

Nosso país foi rural em boa parte da história. Na década de 40, a população urbana era de apenas 31%. A virada ocorreu nos anos 1970 e, atualmente, em torno de 90% da nossa população é urbana. Enquanto este intenso processo de urbanização acontecia, o Brasil tinha o desafio de atender à crescente demanda interna por alimentos. Apesar de continental, o país era um importador líquido de alimentos.

Em um estudo clássico sobre a agricultura do Brasil, publicado em 1971, Edward Schuh e Eliseu Alves perceberam que faltava conhecimento sobre os solos tropicais e sobre como utilizá-los da melhor forma.

Alisson Paolinelli

Para mudar esse quadro, um conjunto de políticas públicas foi posto em prática no início da década de 1970, sustentado por alguns pilares: pesquisa e desenvolvimento, extensão e crédito rural, dando início à modernização da agricultura brasileira. É aí que o protagonismo do ministro Alysson ganha o Brasil.

A virada de chave, evidentemente, foi uma obra coletiva, mas o ministro inspirou, liderou e iluminou muitos dos caminhos exitosos que foram trilhados pelo nosso agro, do qual nos orgulhamos hoje.

A história de Paolinelli, patrono da agricultura tropical, se confunde com a história da modernização da nossa agricultura em geral e da Embrapa, em particular. Formado em engenharia agronômica pela Universidade Federal de Lavras, Paolinelli se especializou nos estudos sobre o potencial do Cerrado para a produção agrícola. Hoje, o Cerrado brasileiro é a região agrícola mais competitiva do mundo.

Paolinelli chegou ao Ministério da Agricultura em 1974, ficando por cinco anos. Quando assumiu a pasta, adotou três estratégias principais:  fortalecimento da Embrapa, criação da Embrater e do Polocentro.

Na Embrapa, que ainda engatinhava, o ministro Alysson deu tração. Criou 17 centros regionais e contratou mil profissionais, a maioria só com graduação. Viabilizou bolsas de estudos, enviando centenas de brasileiros para os principais centros de pesquisa do mundo com um objetivo muito claro: buscar tecnologia da agricultura temperada e criar as condições para adaptá-las e desenvolver a agricultura tropical no Cerrado. Foi o início do movimento catalítico da nossa agricultura.

Também criou a Embrater (Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural), que absorveu a estrutura da Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural (Abcar). A Embrater levava para a ponta os conhecimentos gerados pela pesquisa da Embrapa.

Com o Polocentro (Programa de Aproveitamento e Desenvolvimento do Cerrado Brasileiro), deu o suporte de infraestrutura necessário, destinando mais de US$ 3 bilhões em créditos.

“Desde a cerca da fazenda até a estrada para escoar a produção, passando por rede elétrica, telefonia, melhoria da casa, compra da caminhonete, do trator, da plantadeira, armazenamento do silo, enfim, tudo o que era necessário para otimizar a produção”, dizia o ministro Alysson.

Em 2020, quando convidei o ministro Alysson para um bate papo no podcast “4.0 no Campo”, ele generosamente me atendeu. Ao contrário de quase todos que o entrevistavam, não perguntei sobre o passado. Queria a opinião dele sobre o futuro. Ele logo partiu para o ataque: “O futuro está a nos exigir. Muito mais do que antes. Os EUA e a China não conseguem crescer mais. Estão chegando no limite.”

Como muitos estudos apontam, o Brasil será crucial para suprir a demanda adicional por alimentos nas próximas décadas. Alysson não tinha dúvida de que vamos conseguir.

“Precisamos chegar a 620 milhões de toneladas de grãos para atender à demanda mundial. E eu não estou apavorado com isso. Com irrigação vamos produzir muito mais. A agricultura temperada, que dominou por 4 mil anos o abastecimento mundial, só tem meio ano. Lá é frio, o que paralisa os fenômenos biológicos. Aqui, não. Temos 12 meses de biologia funcionando.”

Mais à frente o provoquei, perguntando se iremos ver engenheiros agrônomos e cientistas de dados chegando nas fazendas juntos numa caminhonete. De pronto, respondeu: “Já estamos vendo. Hoje, as ciências agrárias já estão se interpenetrando em todas as outras ciências.”

Perdemos o ministro Paolinelli da nossa convivência, mas seu legado nunca será esquecido. O Brasil agradece.

*Octaciano Neto é diretor de agronegócios da Suno e ex-secretário de Agricultura do Espírito Santo