ENTREVISTA

“Não dá para proteger os maus pagadores do agro e culpar a Selic”

O agro brasileiro tem oportunidades magníficas, mas a insegurança jurídica pode travar investimentos, diz Fabiana Alves, CEO do Rabobank no Brasil

Fabiana Alves, CEO do Rabobank no Brasil | Crédito: Victor Affaro
Fabiana Alves, CEO do Rabobank: Além de plano para destravar investimentos, o Brasil precisa olhar para a fome | Crédito: Victor Affaro

O Brasil vive uma distopia entre o tamanho das oportunidades para geração de riquezas e a sua capacidade de resolver questões básicas para aproveitá-las, sobretudo no agronegócio. A avaliação é de Fabiana Alves, que comanda as operações brasileiras do Rabobank, uma das maiores instituições financeiras voltadas ao agro no mundo.

“Temos oportunidades magníficas e extraordinárias e estamos falhando em cuidar de questões fundamentais, como a segurança jurídica e fundiária”, afirmou a CEO em entrevista ao The AgriBiz.

Entre os principais problemas a serem enfrentados, a executiva citou a indústria de recuperações judiciais que se formou no agro e a instabilidade nos instrumentos de garantia utilizados em operações de crédito, como a alienação fiduciária, o que acaba contribuindo para o aumento da inadimplência e das taxas de juros.

Na questão fundiária, Fabiana Alves destacou as dificuldades para rastreabilidade da produção agrícola devido a inconsistências no Cadastro Ambiental Rural (CAR). “Qualquer coisa que a gente vá fazer em relação às oportunidades para o futuro, precisamos dizer de onde vem a produção. Hoje, não conseguimos dar essa transparência de forma eficiente porque a gente não tem o CAR”, diz.

Para a executiva, é preciso um choque de gestão para fortalecer o papel do Brasil como fornecedor global de alimentos e líder na transição energética, sem perder de vista os problemas sociais.

“O Brasil precisa de um business plan para destravar esse potencial do agro exportador, produtor de biocombustíveis etc. Mas também tem uma outra parte que a gente precisa olhar, que é ter gente morrendo de fome no país do agro.”

A seguir, os principais trechos da entrevista:

The AgriBiz: Existe uma preocupação de que a alta da taxa básica de juros pode atrasar a recuperação do setor, já que muitos passivos vêm sendo carregados de outras safras e, com a Selic a 15%, ficam ainda mais caros. Qual é a visão do Rabobank?

Fabiana Alves: Taxa de juros alta não é bom para ninguém. A gente sabe que ela acaba destruindo valor ao longo da cadeia, inibe investimento, sobrecarrega a geração de caixa, cria incertezas. Sabemos de todos esses problemas, mas vamos separar as coisas. O problema da inadimplência no agro nasceu numa questão de gestão. É preciso entender isso para não cair na tentação de culpar a taxa de juros. Na percepção do banco e na análise da nossa carteira, a maior causa de default é uma gestão inadequada de capital, de caixa, de liquidez e de suporte financeiro. E tem estudos que mostram isso além da nossa carteira, isso é muito claro.

Essas falhas na gestão foram agravadas por preços baixos e quebras de safra?

Variações cambiais, de taxas de juros, preço de commodities, volatilidade climática, são parte do jogo desde sempre. A gente vê o agro aprendendo a navegar esses ciclos cada dia de uma forma melhor. Mas esses ciclos estão se tornando mais drásticos. O ponto é: historicamente, o que causa a maior parte dos defaults e dos problemas de inadimplência não são esses ciclos, necessariamente. É a combinação desses ciclos com uma alta alavancagem, em geral, com capital de prazo inapropriado. O produtor usa um dinheiro de curto prazo para longo prazo. Quando as coisas estão mais estáveis, mesmo aqueles que abusaram da gestão dos recursos financeiros conseguem navegar. Quando o ambiente sistêmico fica mais nervoso, que é o que está acontecendo agora, você pega mais gente no contrapé.

A falta de segurança nas garantias agrava o problema da inadimplência?

A segunda coisa que tem a ver com a inadimplência, e que não tem nada a ver com a taxa de juros, é segurança jurídica. Estamos trazendo uma instabilidade para os instrumentos de garantia que não contribui para a redução do custo de capital. A solução de transformar a alienação fiduciária num instrumento guarda-chuva, de facilitar o registro dessa garantia e, portanto, facilitar o acesso a capital, está sendo posto em xeque. Temos insegurança jurídica na forma de se registrar essa garantia — e com a dificuldade das instituições financeiras de recuperar seu capital através dessa garantia, no caso de um estresse financeiro e de default, com a declaração de essencialidade. A lei no Brasil não pode ter tantas interpretações diferentes. O instrumento por concepção é um instrumento de alienação fiduciária.

Caso contrário, não faz sentido existir.

Não faz sentido. Senão a gente volta a trabalhar com hipoteca, que não é desejável. Se ele é um instrumento de alienação fiduciária — e se o credor concordou com essa condição e com essa garantia —, não tem como depois esse instrumento ser considerado essencial, especialmente quando há solvência. E aí vem outro ponto: esse mecanismo comercial de RJs, que é inadmissível ser tratado como um produto financeiro e ser aceito pelo sistema judicial brasileiro quando as operações têm solvência. Porque se a lei de recuperação judicial, que tem o seu mérito e é importante, foi inspirada no Chapter 11 americano, a solvência tem que garantir os credores. Se o devedor tem solvência, parte dessa solvência tem que ser utilizada para pagamentos dos credores, dos trabalhadores, de quem quer que seja. O crédito privado, especialmente para as operações de larga escala e exportação, é essencial. Não podemos aceitar que algo que é tão relevante seja posto em xeque dessa forma.

E depois cobrar dos bancos taxas mais baixas…

E depois querer que a taxa de juros seja reduzida. Tem uma inconsistência em tudo isso que precisa de uma intervenção estratégica. Não dá para proteger os maus pagadores, usar a taxa de juros como causa do problema, culpar as instituições financeiras de não terem taxas de juros mais baixas e de não estarem oferecendo crédito, quando na verdade temos um problema sistêmico.

Os bancos têm trabalhado junto com o Judiciário para corrigir esse problema?

Sim, temos discutido isso dentro da FEBRABAN. Eu e minha equipe temos sido muito vocais a esse respeito. Se o Brasil quer garantir o seu posicionamento como exportador mundial de alimentos, se a gente quer garantir a continuidade do crescimento do setor, que hoje é um motor para o País em termos de emprego, de geração de divisas internacionais e etc., a gente precisa ter um approach sistêmico para muitas coisas. E precisamos ter coragem para tratar os problemas estruturais do agro.

A inadimplência no Rabobank caiu em relação à safra passada?

Ela caiu, mas o que tem aumentado é o oportunismo, promovendo e vendendo as recuperações judiciais. Isso é condenável, é inaceitável, isso é um desserviço ao país que depende do agro na sua economia. É impossível explicar isso para o investidor. Em todos os setores você tem credores que passam por problemas. Não tem por que o agro ter o privilégio de ser tratado com esse diferencial jurídico.

E o que precisa ser feito? A Justiça negar alguns pedidos de RJ?

Sim. Os pedidos de recuperação judicial têm que ter embasamento técnico, e nem todos têm. Precisamos de um corpo jurídico preparado para avaliar esses pedidos de forma técnica. Existem oportunidades enormes de se criar um guideline, de se tratar recuperações judiciais do agro de uma forma técnica, correta, justa e que não favoreça esse oportunismo que estamos vendo. A Justiça tem que começar a lidar com esse processo de uma forma mais objetiva. Não dá para a gente ter uma alienação fiduciária e levar quatro anos para recuperar o crédito. Esses quatro anos que o banco leva para recuperar o crédito tem custo. O capital custa. Isso torna todo o sistema muito mais ineficiente e atrai muito menos investidores, haja vista o que aconteceu com os FDICs. Então assim, enquanto o setor precisa muito desse suporte financeiro e o Brasil precisa muito desse setor, qual é a razão para a gente ser tão negligente?

Como está o apetite da agroindústria para investir? O Rabobank tem uma pegada de sustentabilidade muito forte e o setor de biocombustíveis está bastante aquecido.

O Brasil é uma agriculture powerhouse e pode ser uma biofuel powerhouse. Reunimos todos os elementos e conseguimos criar uma sinergia muito grande entre o agro e a produção de biocombustíveis, sem necessariamente o combustível ser uma competição por alimento — que é o problema de muitos outros países. Temos potencial para ser uma biofuels powerhouse e resolver a questão do SAF.

Para o Brasil ser um produtor de SAF?

Sim, para ser um produtor. Só que os projetos de SAF são caríssimos, requerem investimentos super altos, de bilhões. E esses investimentos só vão acontecer se tiver a demanda ou contrato de compra lá na frente. E o contrato de compra vindo de indústrias aéreas, que são super frágeis financeiramente, cria um desconforto na questão de supply & demand. Mas, como economia global, vamos ter que resolver isso porque sabemos que a questão do impacto e da geração das emissões de carbono dentro da cadeia logística é algo muito sério. A expectativa é que se tenha muita demanda.

O Rabobank pode apoiar projetos desse tipo por meio do fundo AGRI3, por exemplo?

Sim. O AGRI3 vai ser muito focado nas soluções de transição da cadeia de alimentos e poderia ser até na cadeia energética. O Rabobank está focado em transição energética em outros lugares do mundo. No Brasil ainda não, simplesmente porque a gente acha que tem ainda um espaço grande e uma necessidade grande de capital para o crescimento do agro, mas pode ser que no futuro a gente também dê um passo a mais dentro da transição energética. Os projetos de SAF poderiam pressupor financiamento do governo. Mas eles poderiam ser bancados indiretamente pelas grandes corporações que vão se beneficiar do SAF e, portanto, por investimentos estrangeiros.

Existem recursos disponíveis?

A gente sabe que no mundo tem um monte de dinheiro procurando projeto. Mas esse monte de dinheiro precisa de projetos que têm um balanço entre risco, retorno e sustentabilidade. Risco não é um risco de implementação do projeto só. É um risco sistêmico. É o risco jurídico, é o risco reputacional ligado ao risco fundiário, a questões de sustentabilidade e desmatamento. O retorno obviamente tem que estar no economics do projeto, tem que funcionar. O ponto é — e eu volto no mesmo tema: Temos oportunidades magníficas e extraordinárias e ainda estamos falhando em cuidar de questões fundamentais. A segurança jurídica e a segurança fundiária são dois grandes exemplos.

Especialmente quando se fala em investimento estrangeiro.

Se a gente vai buscar investimento estrangeiro para a produção de biocombustíveis, provavelmente isso vai estar ligado a condições de não desmatamento. Se estamos falando de projetos SAF, estamos falando de larguíssima escala. Não é com duas, três fazendas. São projetos que requerem larga escala, muitos hectares de produção. A gente vai prestar, garantir transparência sobre a origem desse grão, a origem desse biocombustível. Hoje não conseguimos dar essa transparência de forma eficiente porque não temos o CAR. Voltamos à coisa básica de novo. Um projeto que está aí há mais de 10 anos que o governo precisa desembaraçar. Não temos mais tempo.

As exigências aumentam e não estamos conseguindo responder a elas?

Qualquer coisa que a gente vá fazer em relação às oportunidades para o futuro em SAF, mercado de carbono, projetos de restauração… Criar uma marca brasileira atrelada à preservação, à conservação, à regeneração, ao uso eficiente e racional dos recursos naturais e dos recursos produtivos, inclusive capital humano. Se a gente quer tudo isso, precisa dizer de onde vem a produção. O mundo hoje não aceita mais essa obscuridade. E a gente não consegue ter essa rastreabilidade porque a gente não tem um CAR. Hoje, as instituições, os players da cadeia, seja da indústria de proteína animal, sejam os bancos, sejam as empresas de insumo, têm uma ineficiência porque cada um está tendo de montar o seu sistema de monitoramento. Isso custa na cadeia. Isso é destruição de valor, porque todos nós deveríamos estar confiando num único sistema, público e transparente, de originação de produtos através da inteligência, do geodata e da inteligência artificial. Existe hoje uma distopia entre o tamanho e a magnificência das oportunidades que a gente tem e a nossa capacidade de resolver questões básicas para aproveitar essas oportunidades.

Essa questão do CAR está paralisada?

Eu não sei se está paralisada, mas eu acho que os esforços estão descoordenados. Existem pessoas super preparadas no governo, com direcionamento, com o mindset correto, querendo resolver o problema, entendendo a gravidade e o potencial que se tem ao resolver essas questões. Mas vemos essas pessoas, super bem intencionadas, travadas pela forma como a máquina opera, pela vontade política, pela burocracia. Falta um projeto para o País, falta um business plan para o agro. Uma nota de gestão.

O que precisa estar nesse business plan?

Eu coloco tudo nesse business plan. Como país, temos que olhar para o agro como um todo. Tem tudo isso que é necessário para destravar esse potencial do agro exportador, do produtor de biocombustíveis e etc, mas tem também uma outra parte do agro que a gente precisa olhar: que é ter gente morrendo de fome no país do agro. Também tem esse outro lado para ser olhado. E ele precisa ser olhado pelo sistema financeiro, pela pesquisa, pela academia, todo mundo. O espectro é muito grande e o governo tem que olhar para tudo isso. Não dá para criar soluções que resolvam esse problema e larguem o outro à deriva. Eu acho muito difícil ter uma atuação eficiente e eficaz sem um planejamento, sem um plano estratégico para o agro brasileiro de longo prazo, apartidário, não ideológico, mas orientado para o futuro do País. E hoje estamos presos. Temos esforços fantásticos de todos os setores, mas está tudo descoordenado porque não temos um plano macro, um plano único.