
Você já deve ter ouvido falar que quem mais perde com o desmatamento da Amazônia é a própria agricultura que, algumas vezes, é fonte de pressão para a abertura de novas áreas.
A afirmação vem acumulando evidências científicas: segundo pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV), o desmatamento na Amazônia vem reduzindo a janela de chuvas em certas áreas de Mato Grosso em até 45 dias. E menos dias de chuva podem significar prejuízos à segunda safra — ou até mesmo inviabilizá-la em casos mais extremos.
De acordo com o estudo da UFV, a cada 10% de aumento no desmatamento nas áreas de vegetação nativa amazônica, o início da estação chuvosa nas regiões mais sensíveis de Mato Grosso atrasa 1,7 dia.
O trabalho da UFV começou em 2019 e, desde então, vem confrontando os registros de chuvas com os de desmatamento na Amazônia — concentrado na porção oriental do bioma e ligado à abertura de áreas, principalmente para pastagem.
Naquele ano, analisando dados de área plantada e produtividade desde 1980, os pesquisadores estimaram que o desflorestamento poderia reduzir a janela de chuvas em certas regiões do Mato Grosso em até 27 dias.
Desde então, várias safras confirmaram aquela previsão. E, em algumas delas, a redução foi ainda mais drástica do que se estimava: bateu em 45 dias em 2022/23 nas zonas mais afetadas, como a porção entre o sudeste e o centro do Estado.
Isso representa quase 25% da janela ideal de regime de chuvas para que safra e safrinha aconteçam sem percalços.
“Analisando os números, a tendência de redução da janela de chuva fica muito clara lado a lado com a evolução do desmatamento”, explica Marcos Heil Costa, professor da UFV e coordenador da pesquisa.
Em um paper publicado em 2024, o grupo coordenado por Costa concluiu que a destruição da Amazônia “está associada a danos econômicos graves” para o agronegócio mato-grossense.
“Até 2019, era uma possibilidade”, ele pontua. “Agora, não: observamos diminuições nas janelas hídricas em vários anos recentes, com as chuvas iniciando mais tarde e acabando mais cedo.”
As descobertas se somam a outras evidências. Um trabalho conduzido pelo pesquisador Eduardo Assad na Fundação Getúlio Vargas mostrou que a estação chuvosa no período da safrinha já foi reduzida em 30 dias. Pesquisadores da Embrapa e do Inpe chegaram a conclusões semelhantes.
A relação entre a redução da estação chuvosa e o desmatamento também é evidenciada por outros estudos. Uma pesquisa de cientistas do Brasil e da Holanda estimou, no ano passado, que 80% das chuvas nas regiões agrícolas do País nasçam na Amazônia.
Outro estudo do Centro de Sensoriamento Remoto da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) associou o Arco do Desmatamento, que contorna as fronteiras leste e sul da Amazônia, ao aumento de eventos extremos, como inundações na região Sul.
Diferencial de chuvas ameaçado
Costa, da UFV, explica que o Mato Grosso historicamente teve entre 200 e 220 dias de regime de chuvas. Segundo ele, isso foi essencial para viabilizar a segunda safra, presente em 70% do estado e um diferencial que fez dele um gigante agrícola.
Entretanto, a partir de 2000, os incidentes de janelas inferiores a 200 dias se multiplicaram, segundo o pesquisador. E a tendência se intensificou em anos recentes.
O agravamento não é linear, explica Costa. Ainda há anos em que o clima ajuda, como na atual safra, quando a estimativa é de produção recorde de milho na safrinha.
Mas na média anual, segundo o trabalho, a redução na temporada chuvosa na região entre Sorriso e Primavera do Leste já está em dez dias. E em três das últimas seis safras, a janela caiu para menos de 180 dias, o patamar abaixo do qual se estima prejuízo econômico para a safrinha.
“Nessas ocasiões, teve produtor desistindo da segunda safra. Outros plantaram, mas correram riscos, e, em alguns casos, perderam dinheiro”, diz Costa.
Ele explica que na porção oeste do Estado “a chuva ainda é longa, e os produtores ainda não estão sentindo. Mas a tendência é a redução chegar lá, também.”
E o olhar do grupo para o futuro não é bom. “Nossas previsões, que consideram os cenários de aquecimento global e desmatamento, mostram que vai piorar. Vamos ter uma estação chuvosa cada vez menor no Mato Grosso”, ele alerta.
Resistência
Costa é professor da UFV há 33 anos e tem experiência em climatologia aplicada à agricultura, com foco em recursos hídricos.
Segundo o pesquisador, cuja equipe vem interagindo com associações e produtores ao longo dos anos, ainda persiste uma dificuldade de compreensão da ligação entre o desmatamento na Amazônia e a produtividade no Mato Grosso — o estado é o único do País a abrigar três biomas: Amazônia, Cerrado e Pantanal.
“A conscientização tem sido bem difícil. Os agricultores dizem que o problema não é com eles, mas com os colegas no Pará. De certa forma, eles têm razão, mas quanto mais o desmatamento desce em direção ao sul, maior o risco de uma redução ainda maior na janela de chuvas no Mato Grosso.”
Na visão dele, falta o entendimento de que quem abre áreas de mata virgem se beneficia economicamente às custas dos produtores em outras regiões.
A solução, diz, é exigir o respeito ao Código Florestal. “Os 80% de preservação do bioma amazônico resolveriam o problema. Mas ainda vemos muitas dificuldades no cumprimento.”
Irrigar para adaptar
Além da hercúlea tarefa de reduzir o desmatamento na Amazônia, a resposta à diminuição na janela de chuvas no Mato Grosso vem na forma de esforços para disseminar a irrigação.
Um artigo publicado neste ano pela equipe de Costa aponta para a irrigação como condição indispensável de adaptação à mudança climática.
Mas essa iniciativa guarda “desafios significativos em disponibilidade de crédito e em produção e distribuição de energia”, além da demanda por um “monitoramento cuidadoso das fontes de água para mitigar o risco de estresse hídrico”.
A missão é grandiosa, ressalta Costa: são mais de 12 milhões de hectares de soja no estado, quase 9 milhões deles com algodão ou milho de segunda safra, e só cerca de 350 mil hectares com irrigação.
Segundo ele, o lado bom, se há, é que os agricultores e o Estado estão cientes: “Ninguém será pego de surpresa”.
O pesquisador acredita que a disseminação virá do exemplo, como é comum entre os produtores. “Um vê o vizinho instalar irrigação e ter um ano bom, e, no ano seguinte, copia a iniciativa. A gente está na direção certa, mas mais devagar do que deveria.”