Trilhos sendo colocados na Ferrovia Estadual de Mato Grosso, da Rumo | Crédito: Rony Santos/Rumo
Trilhos sendo colocados na Ferrovia Estadual de Mato Grosso, da Rumo | Crédito: Rony Santos/Rumo

Ferrovias são monopólios naturais. Sendo capital-intensivas, possuem alto custo de instalação, o que é compensado por despesas variáveis menores do que no modo rodoviário de transporte. Isso se deve, essencialmente, aos ganhos de escala proporcionados pela maior eficiência energética e ao reduzido número de trabalhadores em comparação aos caminhões.

Não é por acaso que essas infraestruturas são objeto de regulação econômica. Se bem executada, a regulação promove o desenvolvimento socioeconômico com a maximização da oferta de serviços. Consequentemente, ganha-se também com a menor emissão de poluentes e de gases causadores do efeito estufa.

Há, porém, o outro lado da moeda: quando a regulação permite que a concessionária utilize seu poder econômico excepcional para praticar distorções que servem ao interesse de maximizar lucros extraordinários. Nesses casos, a sociedade perde em inúmeros aspectos, a começar pela oferta sempre aquém da necessária para potencializar o uso da via.

O fato é que a otimização sob a ótica da concessionária atende tão somente ao seu interesse particular ou, melhor dizendo, aos seus acionistas. Já o Estado, que fez a concessão visando ao interesse público, não vê seus objetivos atingidos. Para quem duvida, basta olhar os diversos planos de logística cujas metas de longo prazo são sistematicamente frustradas no que se refere à diversificação da matriz de transportes.

As razões para isso são muitas: a começar pelas tradicionais dificuldades de se realizar negócios no Brasil, baixa produtividade média, alta carga tributária, e assim por diante. Mas isso, por si só, não explica toda a história. É preciso buscar as explicações intrínsecas ao próprio modelo vigente. Vamos lá.

Como abordei neste artigo, ainda estamos muito distantes de contar com sistemas públicos, transparentes e em tempo real sobre a disponibilidade e movimentação de locomotivas e vagões. A bem dizer, se o Brasil precisasse dessas informações neste momento, veríamos o setor público correr para solicitá-las às concessionárias, processo lento e de baixa eficiência em situações emergenciais.

Não é à toa que vimos milhares de quilômetros de vias férreas, que custaram muito ao país, abandonados e degradados. O custo dessa recuperação é alto e ensejará, provavelmente, grandes batalhas judiciais. Ao fim, mesmo que o Estado vença, nada disso servirá para recuperar as perdas de competitividade e os danos socioambientais.

Mas não podemos deixar de comentar sobre as tarifas de transporte ferroviário. Elas devem preservar o equilíbrio econômico-financeiro, como manda a Lei, e constar de revisões periódicas na forma pertinente do contrato, bem como de ampla transparência de sua evolução, conforme previsto no art. 9º, § 5º da Lei de Concessões.

O problema é que algo excepcional, as denominadas operações acessórias, passou a ser regra no relacionamento com os usuários do transporte ferroviário de cargas. Mais grave: não possuem nenhum tipo de limitação, exceto o fato que as receitas com essas cobranças não podem ultrapassar 24,18% das receitas tarifárias no ano civil, conforme a Resolução ANTT nº 6.031/2023. Caso contrário, inicia-se uma análise avançada do caso.

Ainda assim, a norma é pouco precisa sobre quais são os indícios concretos de abuso de poder econômico. Logo, conforme previsto no próprio art. 32 do normativo em apreço, mostra-se necessária a edição de instruções complementares a fim de se conferir maior objetividade à referida análise avançada e à identificação de prática abusiva pelas concessionárias.

Na prática, o que se tem no Brasil é um sistema de tarifas de transporte que não passa por um processo de revisão há mais de 10 anos, quando, nesse período, deveria ter sido feito pelo menos duas vezes. Além disso, a permissão para cobranças de serviços acessórios em percentuais tão elevados e sem consideração sobre a sazonalidade perpetua um modelo que olha para o preço do frete rodoviário como alvo, ajustando apenas a composição dos tipos de tarifa para atingir seu resultado.

O argumento de que as tarifas acessórias são de livre negociação, mesmo com prestadores terceiros, não tem respaldo na realidade. Mesmo após muitos anos e com a situação se agravando, não existem prestadores alternativos de operações acessórias, o que precisa ser discutido e até fomentado com urgência. Mantido esse quadro, perpetua-se um cenário de ausência de concorrência, mesmo porque se sabe que há grandes restrições técnicas e econômicas à entrada de terceiros, inclusive quando estes são os próprios contratantes.

As tarifas-teto calculadas no ciclo 2012/2013 já previam grande parte do que atualmente está caracterizado como operação acessória à prestação do serviço. A exacerbação desse instrumento provocou distorções severas no transporte de cargas no Brasil e permitiu, inclusive, políticas de precificação por cluster, as quais abordarei futuramente, como trabalhado nesta reportagem.

Em resumo, é urgente que a regulação se volte ao seu objetivo original e maior, ou seja, promover a defesa do usuário, parte vulnerável, e a ampliação da oferta com qualidade do serviço e modicidade tarifária. Com o mercado internacional cada vez mais conturbado, não podemos dormir no ponto e perder mais esse trem.