Cotribá

Embora tratado como uma decisão inovadora na aplicação da Lei de Recuperação Judicial e Falências, o despacho do juiz da vara empresarial de Santa Rosa (RS) no caso da Cotribá, a cooperativa mais antiga do País, responde a opiniões jurídicas há muito tempo tratadas.

O conteúdo de referida decisão aplica de maneira parcial o regime da lei 11.101/05 à situação da Cotribá. Isso acontece em um momento em que o agronegócio, mais especificamente, tomadores de crédito e agentes inseridos no meio da cadeia de fornecimento de grãos e insumos, enfrentam um cenário intensamente negativo de margens, juros, preço de insumos e quebras de safras, o qual vem abatendo mais e mais participantes.

Por tratar a Cotribá como uma sociedade empresarial, a decisão causa estranheza a princípio, uma vez que é clara a definição legal de que as cooperativas não são abrangidas pela LRF. São, por sua vez, tratadas por lei própria, a Lei 5764/71, que formalizou o sistema das cooperativas no país (“LCB”).

Caso a Cotribá fosse tratada de acordo com o determinado pela literalidade da lei, não poderia se valer de aspectos da LRF como ocorrido, mas deveria seguir a linha própria para tratamento das cooperativas em dificuldades financeiras, qual seja, a de um regime de liquidação da sociedade cooperativa, algo completamente diferente do propósito de recuperação que norteia o enfoque legislativo dado ao caso da Cotribá.

Assim sendo, a decisão em questão conjuga favoravelmente os interesses do devedor e dos credores, em razão das características mais modernas (ainda que não ideais) da aplicação da LRF frente àquelas da LCB.

De início, importante ressaltar que a LRF responde positivamente a quesitos muito importantes na recuperação do crédito e reestruturação da sociedade, como a gestão dos ativos do devedor, transparência do procedimento e participação direta dos credores no desenvolvimento do plano.

Recuperação vs liquidação

Inicialmente, a primeira diferença que se coloca entre os dois sistemas é a do envolvimento necessário do Judiciário na concessão da recuperação judicial (e da extrajudicial, na medida em que homologa o plano) e a possibilidade de a liquidação das cooperativas poder ocorrer mediante ação unilateral da assembleia dos cooperados, sem envolvimento de terceiros, como no caso da liquidação extrajudicial.

Adicionalmente, existe uma grande diferença no prazo de suspensão legal das ações contra a sociedade em crise: 180 dias na LRF e 1 ano na LCB, ambos prorrogáveis por igual período, desde que preenchidas determinadas condições.

Nesse ponto, encontra-se um aspecto de ordem prática muito importante para os credores. Segundo entendimento corrente da LRF, existe a possibilidade das execuções de crédito extraconcursal correrem em paralelo à formação do concurso de credores, privilegiando o crédito estruturado por garantias fiduciárias, por exemplo.

O paralelo com a LCB não é pacífico, uma vez que tal lei determina a suspensão de todas as ações contra a cooperativa em crise, não fazendo distinção do tipo de ação ou do crédito discutido nela (vide posição divergente em acórdão do STJ, envolvendo restituição de créditos em ACCs entre Unibanco S/A e a Cooperativa Agrícola de Cotia – “CAC”).

Já foram identificadas posturas diferentes em casos similares discutidos no Judiciário. Uma corrente considerava que todas as ações deveriam ser suspensas, inclusive ações de busca e apreensão (próprias de garantias fiduciárias), seguindo a LCB; outra considerava que esse tipo de ação, por se tratar de medida coercitiva sobre patrimônio dos credores (e não mais dos devedores) não deveria ser suspensa.

Ressalte-se que, entretanto, em ambas as posições, o caráter da essencialidade dos ativos em garantia fiduciária ganha corpo e deverá ser enfrentado pelos credores, considerado que, em muitos casos, são esses ativos que fazem parte do negócio.

A questão da essencialidade é muito importante. Na LRF, é muito difundido que ela tem a força de suspender ações de execução de crédito extraconcursal, dado que seriam ativos chave na recuperação da sociedade. Na LCB, ainda que esteja se tratando ali de um mecanismo apenas de liquidação direcionado ao pagamento das dívidas da sociedade, a retirada de ativos desta categoria (de essenciais) da posse da cooperativa pode comprometer o plano de repagamento geral. Por vezes, pode-se estar tratando de um grupo de ativos que só deva ser extirpado da cooperativa em momento futuro e mais próximo do fim da liquidação. O tempo da liquidação não é o mesmo da suspensão das ações.

Muito pelo contrário. Liquidações de cooperativas podem durar anos e anos. Tomem-se por exemplo os casos da CAC, da Cotrimaio e da Cotrijuí. Um problema enfrentado na liquidação das cooperativas é a dificuldade de se encontrar consenso entre credores. Enquanto na LRF existem formas, controles e prazos para as ações do devedor e dos credores, o que tende a direcionar o certame para um acordo (ainda que não integral entre os credores), na LCB, o sistema é mais superficial e menos transparente. Na liquidação extrajudicial, por exemplo, não existe a figura do administrador judicial e do juízo (por vezes, especializado), ficam os créditos a mercê de negociações individuais que em muitos casos não são eficazes e transparentes.

Por princípio, a ausência de um conjunto de regras na LCB que a direcione a um cenário de recuperação e não de liquidação é o principal entrave na sua aplicação atual. É sabido (veja-se o passivo de R$ 1 bi tratado no caso Cotribá) que as cooperativas agrícolas em muito superam empresas privadas em faturamento e influência na cadeia de distribuição. Trata-se muitas vezes de cooperativas antigas, embrenhadas na sociedade e com interferência profunda na saúde de muitos stakeholders. Por esse motivo, surge um relativo consenso jurídico sobre a inadequação do sistema de liquidação que lhe seria naturalmente aplicável.

O que esperar?

Logicamente, a decisão do caso Cotribá não é final. Será desafiada nas instâncias superiores, certamente. É possível que existam credores desinteressados em um plano de recuperação da cooperativa, caso enxerguem nela solvência para pagamento das dívidas e uma via mais desimpedida no processo de liquidação. Nessa hipótese (bem restrita, é verdade), ainda não se coloca de maneira pacificada a questão da essencialidade dos bens, como mencionado acima, de forma que poderiam alguns credores encontrar menos obstáculos na recuperação de seu crédito.

Note-se que a visão de recuperação de crédito delineada acima é oposta ao interesse social de recuperação da sociedade e da maior parte dos credores concursais. Será uma realidade a ser enfrentada, todavia, especialmente quando se verifica que grandes agentes, como a Cotribá, fazem parte de relacionamentos de crédito complexos e bem engendrados, como estruturas desenvolvidas para o mercado de capitais e para grandes financiamentos bancários. A construção de garantias nessas estruturas tem como objetivo a minimização de riscos jurídicos e, dessa forma, muitas vezes trazem em seu bojo estruturas de garantias fiduciárias.

Como conjugar os interesses de todas as classes de credores é um problema que não se afastará da influência do Judiciário, mas que será certamente melhor tratado em uma sistemática da LRF do que a da LCB.

Ainda que tenham que enfrentar discussões de essencialidade, é do interesse de todos os credores, até daqueles de garantias fiduciárias, que seja permitida às sociedades cooperativas a via recuperacional àquela da dissolução. A probabilidade de recuperação é significativamente maior, como mostra a experiência.

Sem uma solução própria a ser absorvida da LCB, a aplicação subsidiária da LRF ao regime das cooperativas parece ser o possível nesse momento, mas não deve ser a solução definitiva.

Embora relevantes e pujantes no mercado, as cooperativas ainda guardam características próprias de importância social que as destacam das sociedades de capital. O caráter social predomina nas cooperativas. Ela atua para atender às necessidades de seus cooperados, que retornam valor para a cooperativa com sua atividade e participação.

É contraditório, justamente nesse tipo de sociedade, que não seja possibilitada uma via de recuperação, mas somente de extinção.

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Fábio Giorgi é advogado, bacharel e mestre em Direito do Comércio Internacional pela USP, sócio do Giorgi Martins Advogados, escritório especializado em Agronegócio.