
Como anfitrião da COP 30, o Brasil tem a oportunidade única de mostrar ao mundo as tecnologias e avanços do País para produzir de forma cada vez mais sustentável, ajudando na mitigação das mudanças climáticas. Mas, em termos de negociação, os problemas começam dentro de casa.
“Há uma desconexão dentro do governo. O Ministério do Meio Ambiente não conversa com o Ministério da Agricultura, que não conversa com o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, que não conversa com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que também não conversa com o Ministério da Fazenda”, disse Carlos Eduardo Cerri, professor da Esalq e diretor do Centro de Estudos de Carbono em Agricultura Tropical (CCarbon), da USP, ao The AgriBiz.
A prova dessa desconexão é o Plano Clima, o guia da política climática brasileira com um roteiro de implementação das ações de mitigação e adaptação aos impactos das mudanças climáticas até 2035, que deve ser apresentado na COP 30. O documento também reúne dados sobre o impacto de cada setor econômico nas emissões de gases de efeito estufa.
A principal controvérsia está na falta de clareza da metodologia adotada para alocar parte das emissões do uso da terra (setor vinculado ao desmatamento) para a agricultura e pecuária e para um novo setor de conservação da natureza.
“Há um equívoco metodológico mesmo, e mais do que metodológico, político, de querer atribuir ao setor agro as emissões dos 46% de desmatamento, que não é só oriundo de atividade agropecuária”, disse o diretor do CCarbon.
“O desmatamento tem vários drivers, várias causas. A parte que, de fato, vem do agro tem que ficar no setor. Mas tem desmatamento ligado à mineração, garimpo, grilagem, demarcação territorial. Só em mineração, o Brasil tem 3,5 milhões de hectares”, reforça Cerri, uma das maiores referências no País na temática de mudanças climáticas.
Durante a entrevista, o professor, que acabara de retornar de uma reunião ordinária do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) em Lima, no Peru, também falou sobre os desafios e expectativas para COP 30, que começa nesta segunda-feira e termina no próximo dia 21 na capital paraense.
Ele participará como palestrante em vários painéis na Agrizone, vitrine do modelo brasileiro de produção agropecuária, instalada dentro da Embrapa Amazônia Oriental, em Belém.
A seguir, os principais tópicos da entrevista:
Plano Clima
As discordâncias dentro do governo sobre o Plano Clima não se restringem à origem do desmatamento, mas também às compensações, na visão de Cerri.
“A cana-de-açúcar que foi plantada e recebe fertilizante nitrogenado, que tem um potencial de aquecimento quase 300 vezes maior que o CO2, isso vai para o agro e é justo”, diz. “Mas esta cana cresce, é colhida, vai para usina, é esmagada e parte dela se transforma em etanol, deixando de usar combustível fóssil. Estes benefícios vão para o setor de transporte. A conta não fecha”, diz o pesquisador.
Enquanto o Plano Clima estava em consulta pública, uma aliança formada por Embrapa, FGV e CCarbon redigiu um documento alertando sobre os problemas. Também ocorreram reuniões com os ministérios. Mas não há notícias que o guia da política climática brasileira tenha sido revisado.
“As áreas de preservação dentro das unidades produtivas – reserva legal, área de preservação permanente – vão para o Ministério do Meio Ambiente. As emissões vão para o Ministério da Agricultura”, diz Cerri. “O Ministério do Meio Ambiente tem um poder por causa da sua ministra, a força política dela prevalece sobre os aspectos técnicos.”
O impasse levou entidades do agro e parlamentares que representam o setor a pedir o adiamento do Plano Clima, para que o documento possa ser retrabalhado e apresentado em outro momento e não na COP de Belém. Até o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, disse na semana passada que iria pedir ao presidente Lula o adiamento da divulgação.
Problemas no IPCC
Na última semana de outubro, Cerri esteve Lima, no Peru, na reunião do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que reúne pesquisadores de cerca de 200 nações para avaliar os impactos e riscos futuros das mudanças climáticas.
Neste momento, o time está trabalhando no Sétimo Relatório de Avaliação, o AR7, que deve ser lançado no próximo ano. Cerri participou de dois grupos de discussão, um focado em ciência, e outro em ações de adaptação e mitigação.
Este último envolve sistemas agroflorestais e os diversos modelos de sistemas integrados, como a Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) no qual o Brasil é destaque. No entanto, por se tratar de tecnologias aplicáveis apenas em países tropicais, a tendência das outras nações é reconhecer a importância, mas desvalorizar a escalabilidade.
“É desgastante, tem uma politicagem. Alguns países não querem colocar porque não têm este potencial. Mas o problema é global, os interesses de cada país não deveriam ser trazidos no âmbito técnico-científico”, desabafa. “Se uma nação tem uma prática que mitiga as mudanças climáticas, o efeito é benéfico não só para ela, mas para todos os países”, acrescenta.
Outra questão que incomoda o professor é a necessidade de equilíbrio a qualquer custo no IPCC. O grupo participante precisa ter equidade de gênero (homem x mulher), de países (industrializados x não industrializados; sul global x norte global), de raças.
“Mas às vezes para ajustar as equidades, mandam pesquisadores de outras áreas, que não têm como contribuir. A organização está mais preocupada com questões socioeconômicas do que técnico-científicas”, diz.
Ponto de não retorno
O Acordo de Paris – firmado na COP 21, que ocorreu na França, em 2015 – é um tratado internacional que estabelece metas para combater as mudanças climáticas e limitar o aquecimento global a 2º C até 2050. No cenário mais otimista, a temperatura mundial aumentaria apenas 1,5ºC.
“Isso é possível? Seria se todos os países fizessem mais do que assumiram nas NDCs [Contribuições Nacionalmente Determinadas] do Acordo de Paris. Se as nações cumprirem o que assumiram, a temperatura sobe em torno de 2º C”, explica.
Acima de 2º C, o mundo atingiria o ponto de “não retorno”, ou seja, um ponto de inflexão em que os ecossistemas não conseguiriam mais se ajustar sozinhos. Neste momento, o planeta está prestes a ultrapassar 1,5º C, o que tem provocado a mortalidade de recifes de corais de águas quentes. Mas ainda dá tempo de reverter a trajetória, desde que políticas robustas de conservação sejam consolidadas.
“O que me assusta é uma certa ignorância de algumas empresas, que se esquecem que – se pararem de emitir gases do efeito estufa hoje – a quantidade de gases na atmosfera continua elevada por causa do tempo médio de residência de cada um”, diz o pesquisador.
Só para exemplificar, o CO2 tem o tempo médio de residência de 200 anos, CH4 (metano) tem um potencial de aquecimento 28 vezes maior que o CO2 e um tempo de residência de cerca de 20 anos. E o N2O (óxido nitroso, emitido pelos fertilizantes nitrogenados) tem um potencial de aquecimento 273 vezes maior que o CO2 e permanece na atmosfera por um século.
Oportunidades da COP 30
Durante a conferência em Belém, a expectativa de Carlos Cerri é que o Brasil consiga mostrar suas soluções baseadas na natureza. “Aqui entra agricultura, pecuária, preservação, restauração florestal, restauração de manguezais, que a gente chama de carbono azul [refere-se ao carbono capturado e armazenado por ecossistemas marinos e costeiros]”, diz o pesquisador.
Nas COPs anteriores, que foram em países produtores de combustível fóssil, não houve espaço para isso. Pelo contrário, tentaram atribuir aos sistemas alimentares a culpa pelo aquecimento global. “A COP passada foi no Azerbaijão, a anterior nos Emirados Árabes e a COP 27 foi no Egito. Todos os países altamente dependentes de petróleo e gás natural.”
No entanto, sistemas agroalimentares bem manejados, como Integração Lavoura-Pecuária-Floresta, além de serem mais produtivos, neutralizam as emissões de gases do efeito estufa.
“Temos a oportunidade de mostrar o agronegócio não só como impactado pela mudança climática, mas com o poder de mitigá-la com técnicas de produção sustentável”, diz Cerri. “É uma chance de mostrarmos o que o Brasil faz de bom, como os 17 milhões de hectares de ILPF, e o potencial de triplicar isso, com apoio, investimentos”, finaliza o diretor do CCarbon.