
Nos últimos cinco anos, o agronegócio brasileiro enfrentou três ofensivas de aumento de carga tributária — o PL 2337/2021, o PLP 108/2024 e, agora, a Medida Provisória 1.303/2025.
Todas repetem o mesmo equívoco: a tese de que o agro “não paga imposto” e que seria necessário “corrigir distorções” ao tributar instrumentos como LCAs, CRAs e Fiagros.
Essa visão, à primeira vista razoável, erra no diagnóstico e na direção. O que está em jogo não é uma suposta isenção injusta, mas a espinha dorsal do sistema de crédito rural que o Brasil levou mais de 40 anos para construir, num setor que é pouquíssimo subsidiado quando comparado com os demais países do mundo.
Mais uma vez, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) precisou agir como o que de fato é: o seguro institucional do agronegócio brasileiro. A linha de contenção entre a arrecadação apressada e a racionalidade econômica.
Enquanto a agenda pública tratar o agro como culpado em vez de ativo, continuaremos trocando produtividade por improviso. Tributar LCAs e CRAs é fácil; reformar o Estado é difícil.
A metamorfose do crédito rural
Desde a criação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAI), em 1937, e do Sistema Nacional de Crédito Rural, em 1965, o financiamento do campo evoluiu de um modelo estatal para um ecossistema financiado pelo mercado financeiro privado.
O fim da “conta-movimento”, em 1986, foi o divisor de águas. A partir daí, o crédito rural deixou de depender do Tesouro e passou a se financiar com instrumentos privados.
Basicamente, temos duas origens de crédito no financiamento da nossa agropecuária: (i) crédito rural (Plano Safra), regulada pelo governo no âmbito do Manual de Crédito Rural e as (ii) diversas fontes não reguladas pelo governo federal, nas mais diversas formas: barter, mercado de capitais, balanço das revendas e indústrias, bancos, etc.
O Plano Safra, que é regulado pelo governo federal, financia aproximadamente 1/3 de demanda de crédito que os produtores apresentam anualmente, hoje na casa de R$ 1,2 trilhão, segundo a CNA. Portanto, as fontes não reguladas financiam R$ 800 bilhões por ano.
Aqui, vale um esclarecimento importante. O Plano Safra anunciando anualmente no mês de junho, pode passar a impressão que é todo financiado pelo governo federal. Mas não é.
Nas contas do professor Luiz Caffagni, com base em dados do próprio Ministério do Planejamento, o total de subvenções do governo federal não passa de R$ 30 bilhões, considerando tudo: fundos constitucionais, isenção dos títulos e fundos do agro, equalização da taxa de juros, etc. Portanto, menos de 3% da totalidade de crédito ao agronegócio nacional tem origem no orçamento federal.
Na prática, os R$ 400 bilhões do Plano Safra são operados pelo mercado bancário, mas como regramento do governo federal, através do Manual de Crédito Rural.
Os outros R$ 800 bilhões tem origem no mercado financeiro, seja bancário ou de capitais. Dentro desse valor, o mercado de capitais tem se tornado cada vez mais relavante. Em poucos anos passará o mercado bancário.
Em outras palavras: o financiamento ao agro brasileiro deixou de ser uma música de Fernando e Sorocaba, “bala de prata”, onde tudo se resolvia no Banco do Brasil com o Plano Safra e passou a ser uma música de Chitãozinho e Xororó, “Colcha de Retalhos”, costurada com dezenas de fontes e atores diferentes.
Em tese, ficou mais complexo, mas o mercado de capitais tem duas vantagens: o investidor (passivo) de fundos é mais paciente do que o investidor de bancos e ele permite mais customizações.
O mito do agro subsidiado
Para avaliar se há privilégio, é preciso comparar entre países, não entre setores domésticos.
Segundo estudo recente de Rodrigo Peixoto da Silva (Cepea/USP), com base em dados da OCDE, o suporte total à agropecuária brasileira caiu 62% em termos reais entre 2000 e 2023 — de US$ 26 bilhões para US$ 9,9 bilhões .
O suporte direto ao produtor (PSE, subsídios) também despencou — de US$ 18,6 bi em 2000 para US$ 7,3 bi em 2023, o equivalente a 3% da receita bruta da agropecuária.
Na União Europeia, essa relação é 16,8%; na China, 13%; nos EUA, 6,8% .Ou seja: o Brasil subsidia quatro a cinco vezes menos que as grandes potências agrícolas.
Quando se observa o apoio a serviços gerais — pesquisa, assistência técnica, inovação — a discrepância é ainda maior. O indicador GSSE (valor das transferências brutas para a agropecuária por meio de instrumentos de política agrícola que beneficiam o setor como um todo (e não o produtor individualmente), como os sistemas agrícolas de pesquisa, desenvolvimento e inovação, sistemas de inspeção e controle sanitário e infraestrutura agrícola) despencou de US$ 9,2 bi em 2011 para US$ 1,7 bi em 2023 .
Mesmo com esse baixo investimento público, o Brasil se tornou líder mundial em soja, café, açúcar e proteína animal.
Selic alta, imposto invisível
O que de fato asfixia o crédito produtivo no Brasil é o custo do dinheiro. Nos últimos trinta anos, em 80% das reuniões do Copom, a Selic esteve acima de 8% ao ano. Com juros nesse patamar, o país cobra uma espécie de imposto invisível sobre o investimento.
A culpa não é do Banco Central, mas do desequilíbrio fiscal crônico: governos que gastam mais do que arrecadam, forçando o BC a usar os juros para segurar a inflação. O juro alto é consequência, não causa. Por isso, o debate sobre “isenção” no agro é desviado.
O verdadeiro privilégio é gastar sem limite e repassar a conta via Selic. Se o Brasil tivesse juros de país normal, ninguém discutiria isenção.
Mesmo sendo a agropecuária menos subsidiada do mundo, eu trocaria — e creio que o setor também trocaria — a isenção do imposto de renda por uma Selic estruturalmente abaixo de 8%.
Nosso problema não é tributário, é macrofiscal. E uma regra simples resolveria parte do impasse: toda vez que a Selic ficar abaixo de 8%, cobre-se imposto de renda sobre os títulos do agro. Quando ultrapassar 8%, desonere-se.
É uma forma de atrelar a política tributária à responsabilidade fiscal — premiando o equilíbrio, não o descontrole.
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Octaciano Neto, colunista de The AgriBiz, é fundador da Zera.Ag. Foi secretário de Agricultura no governo de Paulo Hartung.