Opinião

A lógica da ferrovia de carga: entendendo a realidade por trás dos mitos

Produtividade das ferrovias cresceu expressivamente nos últimos anos, e os investimentos em curso são essenciais para impulsionar ainda mais a logística

A logística ferroviária, no Brasil e no mundo, caracteriza-se por exigir capital intensivo, operações em larga escala e percursos de longa distância. Compreender a trajetória de evolução do setor ferroviário desde a sua privatização, em 1997, é essencial para avaliar as transformações que vêm moldando sua dinâmica — dos investimentos à demanda por transporte, passando pela modernização da malha.

Após décadas relegadas a um papel secundário na matriz de transportes brasileira, as ferrovias avançam, com vigor, rumo à recuperação de seu protagonismo. Conectando os centros de produção aos principais portos do país com alta capacidade e custo competitivo, as ferrovias reafirmam sua relevância estratégica.

Desde o processo de desestatização, as concessionárias promoveram o crescimento de 88% das cargas movimentadas (TU –- Toneladas Úteis) e de 158% na produção ferroviária (TKU – Tonelada-Quilômetro Útil). Somente em ativos, o setor triplicou sua frota, contando hoje com mais de 3 mil locomotivas e 115 mil vagões em operação.

Como resultado, as ferrovias brasileiras movimentaram, em 2024, mais de 540 milhões de toneladas — um recorde histórico. Excluindo o setor de mineração, o transporte de cargas saltou de 85 para quase 150 milhões de toneladas de 1997 até 2024.

Paralelamente, houve uma expressiva evolução nos indicadores de segurança: os índices de acidentes caíram mais de 90%, posicionando as ferrovias brasileiras com desempenho semelhante ao das Class I norte-americanas.

Esse avanço é reflexo de uma robusta agenda de investimentos. Desde a privatização, mais de R$ 200 bilhões foram investidos no setor, com previsão de R$ 40 bilhões adicionais nos próximos dois anos. Esses recursos são impulsionados pelas renovações contratuais e por projetos estruturantes, como a Transnordestina, a Ferrovia de Integração Centro-Oeste (Fico) e a ferrovia estadual do Mato Grosso, esta última em regime de autorização.

A lógica operacional do setor

No entanto, o debate público frequentemente recai sobre críticas que, em muitos casos, revelam desconhecimento sobre a lógica operacional do setor. Questionamentos relacionados à suposta perda de carga, ausência de horários fixos ou capacidade ociosa refletem uma visão equivocada, moldada por parâmetros do transporte de passageiros, inaplicáveis ao contexto de carga.

Ao contrário do que se sugere, o setor ferroviário dispõe de ampla transparência. Informações detalhadas sobre volume transportado, produtividade por tipo de produto, acidentes e velocidade média estão disponíveis no Anuário do Setor Ferroviário, atualizado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

Adicionalmente, a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF) mantém o “Painel ANTF”, plataforma interativa que reúne séries históricas sobre carga, investimentos, eficiência energética, segurança e geração de empregos.

Os questionamentos sobre indicadores específicos, como perda de carga, ignoram sua natureza contratual e privada, restrita à relação entre transportador e cliente, já resguardada por seguros e mecanismos de ressarcimento.

O mesmo vale para a cobrança por tabelas de horários e rastreamento em tempo real: o transporte ferroviário de carga não opera sob a lógica do “trem das oito”. Trata-se de um sistema altamente dinâmico, que responde à demanda de clientes, janelas de atracação em portos e ciclos produtivos, em um modelo B2B essencialmente flexível.

Cada usuário — sejam mineradoras, grandes grupos do agronegócio ou indústrias de papel e celulose — negocia individualmente com a concessionária, conforme suas necessidades logísticas. É essa flexibilidade que assegura a eficiência do modelo, ao contrário da rigidez de uma tabela pública.

Apesar dos expressivos avanços do setor, ainda persiste um desafio estrutural: os trechos ferroviários inoperantes. Grande parte desse passivo decorre da gestão deficitária da antiga Rede Ferroviária Federal, cuja proposta de interiorização com transporte de passageiros e trechos “ramificados” se tornou incompatível com a configuração atual da economia.

A reativação desses trechos requer análise criteriosa: paralisações geralmente refletem mudanças estruturais. Reativá-los sem comprovação de demanda sustentável é um risco que pode resultar em investimentos guiados pelo saudosismo, e não pela racionalidade econômica.

Atualmente, o setor ferroviário atravessa um momento de reestruturação estratégica. Os investimentos bilionários recentes estão transformando a malha em uma plataforma moderna e eficiente para a competitividade do país.

A prioridade deve ser garantir a continuidade desse ciclo virtuoso, com incentivos claros, segurança jurídica e um ambiente regulatório previsível. Só assim o Brasil poderá exercer plenamente sua vocação como celeiro do mundo e com as ferrovias como espinha dorsal de sua logística.