
Até agora, eu tinha evitado escrever sobre este assunto. Não é por falta de interesse — muito pelo contrário, ele tem consumido cada pedacinho de tempo livre na minha agenda. Estou estudando intensamente, e ainda sinto que sei só uma fração do que há para aprender.
Acredito que estamos presenciando o amanhecer de um daqueles eventos de transformação tecnológica que surgem a cada 20 anos. As duas últimas grandes revoluções foram a Internet com os navegadores nos PCs no final dos anos 90, e o smartphone, que impulsionou a onda Social-Local-Mobile em 2008. Sinto-me feliz por ter vivido – e podido trabalhar – nessas três revoluções. Devo ter nascido na época certa!
Interesse em escrever existe, mas daí à coragem de colocar no papel, há uma ponte. Tudo ainda é muito novo, e é difícil prever como o crédito no agronegócio se estabelecerá depois que a poeira baixar.
O risco de o texto ficar rapidamente datado é enorme.
Quem tem mais de 30 anos, lembra do primeiro iPhone? Todos sabiam que ele mudaria o mundo, mas o “aplicativo matador” daquele aparelho inicial era um gatinho que respondia ao toque na tela. Naquela época, era impossível prever o WhatsApp, o Nubank, o Uber e o iFood, e todos seriam inviáveis sem o iPhone ou o Android.
Mesmo assim, hoje resolvi arriscar e lançar meu palpite, mesmo sabendo que, provavelmente, em alguns anos, há uma grande chance de eu ter errado feio.
Então, vamos lá: vejo três aplicações bem interessantes que a inteligência artificial já permite fazer no agronegócio hoje.
1. Gêmeos Digitais
A primeira aplicação da IA no agro é o gêmeo digital. Trata-se de uma representação digital do produtor e da distribuição.
A ideia de gêmeos digitais é bem antiga: uma entidade digital que simula o comportamento de um ente físico, utilizando modelos estatísticos e/ou matemáticos.
Você consegue, por exemplo, modelar um produtor plantando e colhendo em sua fazenda ano após ano, passando por eventos de estresse climático, pressões nos preços das commodities e gargalos operacionais e de manejo.
Também é possível modelar revendas com lojas espalhadas em diferentes regiões geográficas, com opções de mix de produtos e estratégias de preços, e que apresentam maior ou menor exposição à alavancagem e ao risco de portfólio.
Eu mesmo já operava modelos como esses em minha empresa anterior, há quase dez anos atrás.
No entanto, o impacto da IA nos gêmeos digitais é enorme. Até então, os modelos sempre sofriam com a falta de dados para simular um comportamento verossímil, o que limitava seu uso.
Mas, agora, a IA consegue completar os buracos nos dados da mesma forma que restaura uma foto antiga, com um pedaço rasgado. O modelo se torna bom o suficiente para representar a realidade, servindo como uma base sólida para calcular o risco de crédito.
Ao cruzar um pedaço do Imposto de Renda, outro da inscrição estadual e mais um dos registros ambientais, você pode descobrir o parque de máquinas de uma fazenda, a janela de plantio, a capacidade de manejo e, com isso, calcular a probabilidade de o produtor atrasar o plantio na próxima safra. Quanto melhor o modelo, mais comportamentos é possível simular e mais precisa se torna a tomada de decisão.
2. Reprodução de Sistemas Especialistas
A segunda aplicação da IA é a reprodução de sistemas especialistas. Um sistema especialista é uma máquina de diagnósticos que aprende observando as conclusões produzidas por humanos ao avaliar sistemas específicos.
Um bom exemplo de sistema especialista já bem antigo entre nós é o antifraude de e-commerces. O que antes era feito por pessoas reais, analisando compras de cartão de crédito em um terminal, foi substituído, há uns dez anos, por um sistema que aprendeu com centenas de milhares de análises feitas por humanos. Esses sistemas passaram a ser capazes de replicar o mesmo diagnóstico que um humano, dentro do mesmo domínio, desde que fosse restrito o suficiente.
Os sistemas especialistas eram um nicho, com pouco uso no agronegócio. Contudo, com a IA, é possível expandir enormemente a árvore de decisões e construir sistemas muito mais complexos, criando uma infinidade de novas oportunidades no agro.
A leitura de um balanço contábil é um exemplo clássico. Os documentos contábeis, para quem sabe interpretá-los, contam uma história: é possível entender o que está acontecendo na empresa, da mesma forma que um médico identifica uma doença pelos exames de sangue.
Se você pegar milhares de análises de documentos contábeis e treinar uma IA, ela conseguirá produzir diagnósticos de especialistas de forma similar. Você envia o balanço/DRE e recebe o diagnóstico que um analista levaria uma tarde inteira para produzir.
É possível fazer a mesma coisa para definir estratégias comerciais, montar ofertas em pacotes tecnológicos ou até mesmo escolher os sacados mais arriscados de uma carteira.
Lembre-se que os sistemas especialistas mimetizam análises humanas. Portanto, é uma tecnologia pouco útil para resolver problemas que os humanos também não conseguem. Todos os clientes pedem um sistema especialista que preveja Recuperações Judiciais (RJs), mas isso se encaixa neste caso: os humanos também não conseguem prevê-las.
3. Agentes
E, finalmente, temos os agentes. Na arquitetura clássica de software, você tem uma interface de usuário que reage a estímulos: você clica em um botão e algo acontece. Ela consegue reagir a um conjunto específico de estímulos, como botões, links e campos na interface do sistema.
Agora, imagine um sistema que toma a iniciativa e cria os estímulos em você. E que pode reagir a estímulos que não foram previstos na programação original.
Você pode conversar com ele pelo WhatsApp, por exemplo. Ele pode te lembrar pela manhã que estão entrando pedidos com falhas nos cadastros que podem estar escondendo uma violação na sua política de crédito, e te pedir para mandar uma mensagem para os responsáveis no time de vendas insistindo na cobrança dos Impostos de Renda (IRs) desses produtores pela terceira vez, destacando porque isso é tão importante para a empresa.
Em um ambiente complexo como o agronegócio, os agentes têm o potencial de multiplicar a eficiência dos analistas e cobrir os gaps operacionais que hoje machucam tanto as empresas, transformando a forma como as pessoas entendem o papel do software no setor.
Tudo o que descrevi aqui já existe em algum formato aqui na Tarken. Ainda estão em suas versões iniciais: estamos aprendendo. Mas já dá para prever o impacto. É possível vislumbrar um futuro bem diferente do que temos hoje em apenas alguns anos, é só esperar para ver.
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Luiz Tangari, colunista de The AgriBiz, é fundador da Tarken.