One Health

Por que a degradação do solo afeta a saúde animal e humana?

Conceito de One Health integra diversas áreas para prevenir doenças e promover o bem-estar de todos os seres vivos; agricultura regenerativa ajuda a alcançar estes objetivos

Saúde do solo; One Health; Agricultura regenerativa | Crédito: Schutterstock

Os últimos anos têm sido emblemáticos em mostrar a interconexão entre saúde humana, animal e vegetal. Eventos como a gripe aviária e a pandemia de Covid-19 soaram a sirene. Na sociedade está tudo interrelacionado: o desmatamento, as queimadas e a poluição afetam o equilíbrio ambiental, que,  por sua vez, agrava as mudanças climáticas, desencadeando uma série de problemas.

Acontecimentos recentes no Brasil são bons exemplos. A enchente no Rio Grande do Sul foi um dos maiores desastres naturais da história do País e provocou uma alta no número de casos de leptospirose, doença infecciosa transmitida pela urina de ratos, que se misturou com as águas da inundação.

No mesmo ano, o Brasil registrou a maior epidemia de dengue, com mais de 6,4 milhões de casos, conforme mostra o artigo da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.  Segundo especialistas, o aumento das temperaturas aliado às chuvas intensas tem acelerado o ciclo de vida do Aedes aegypti, mosquito vetor de doenças como dengue, Zika e Chikungunya.

O relatório global The Lancet Countdown, inclusive, alerta para um possível aumento da transmissão da dengue no mundo em 37% devido ao aquecimento global.

Na semana passada, o Brasil registrou o primeiro foco de gripe aviária em uma granja comercial, entrando para a extensa lista de países produtores de carne de frango afetados pelo vírus H5N1.

Esses eventos fizeram ressurgir o tema “One Health” (Uma Só Saúde ou Saúde Única), que propõe uma abordagem holística da saúde humana, animal e vegetal.

“A pandemia reforçou a lógica de que não dá mais para trabalhar a questão de saúde de forma segmentada, cartesiana. Uma hora a gente olhava a saúde do homem, outra hora a qualidade da água, outra hora a gestão de resíduos, outra hora a sanidade animal e vegetal. Em nenhum momento, fazíamos a integração desses elos que compõem a visão mais integral de Uma Única Saúde”, diz Clenio Pillon, diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa, lembrando que a temática é prioritária no plano diretor da instituição.

Pillon também usa o episódio da gripe aviária para mostrar a necessidade de ter um olhar integral sobre o ambiente, os animais e o homem.

“As aves migratórias que vêm do Norte podem estar trazendo um patógeno que pode colocar em risco a saúde dos animais, mas também a saúde humana. Veja aí a questão da própria gripe aviária. Há riscos nessa circulação muito tênue entre esses patógenos de um organismo de uma espécie para outra”, diz. “A gente começa a ver aparecer esse tipo de agente em várias espécies. Esse é um sinal muito claro de que está havendo fluxo interespécies”, completa.

A influência da pandemia

Em 2021, durante a pandemia, a demanda de governos e agências por uma colaboração entre setores resultou na parceria quadripartite – formada pela Organização das Nações Unidas para Agricultura (FAO), a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial para a Saúde Animal (OMSA) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) – que criou o Painel de Especialistas de Alto Nível sobre Saúde Única.

O termo ganhou a seguinte definição: “Saúde Única é uma abordagem integrada e unificadora que visa equilibrar e otimizar de forma sustentável a saúde de pessoas, animais e ecossistemas.” Ela reconhece que a saúde dos humanos, animais domésticos e selvagens, plantas e o meio ambiente em geral (incluindo ecossistemas) estão intimamente ligados e são interdependentes.

A abordagem mobiliza múltiplos setores, disciplinas e comunidades em diferentes níveis da sociedade para trabalharem juntos a fim de promover o bem-estar e combater as ameaças à saúde e aos ecossistemas, ao mesmo tempo em que aborda a necessidade coletiva de água, energia e ar limpos, alimentos seguros e nutritivos, tomando medidas contra as mudanças climáticas e contribuindo para o desenvolvimento sustentável.

De acordo com a OMSA, cerca de 60% das doenças infecciosas humanas têm origem animal e o uso indiscriminado de antimicrobianos contribui para este cenário.

O conceito no Brasil

No Brasil, o conceito de Uma Só Saúde é discutido desde a década de 1960, quando médicos e veterinários começaram a abordar a relação entre doenças infecciosas, natureza, animais e humanos.

Mas o conceito ganhou musculatura no ano passado, com o decreto presidencial 12.007, que instituiu o Comitê Técnico Interinstitucional de Uma Só Saúde, composto por 20 instituições e coordenado pelo Ministério da Saúde.

Ese grupo tem por finalidade criar protocolos e bases de dados científicos para ajudar a estruturação de políticas públicas, com programas e ações para promover a saúde nesta visão integral.

“Saúde Única não é uma preocupação nova para a comunidade científica, acadêmica ou autoridades sanitárias brasileiras. É um tema importante em saúde animal, saúde humana e, recentemente, para organizações ambientais. Embora os sistemas de saúde brasileiros lidem com muitas doenças (febre amarela, dengue, Zika e Chikungunya), zoonoses (raiva, gripe, entre outras) e resistência antimicrobiana (AMR), foi a pandemia de Covid-19 que aumentou a preocupação com a prevenção de pandemias de forma mais ampla”, explicou o Comitê Permanente de Saúde Única da Embrapa.

O papel da agricultura regenerativa

O solo degradado, com pouca presença de vegetação e de microrganismos, não é eficaz em realizar processos, como absorver água e nutrientes. Se estiver compactado, a água da chuva irá escorrer, o mesmo com os insumos.

“Você pode jogar uma quantidade enorme de nitrogênio, mas a planta não terá condições de absorver. Este nitrogênio pode escoar para um manancial d’água e promover eutrofização [crescimento excessivo de algas], um problema ambiental”, explica Pillon.

Por isso, adotar as boas práticas da agricultura regenerativa é fundamental para promover a qualidade do solo, do alimento produzido ali e do meio ambiente, pois elas contribuirão para que a lavoura sequestre mais CO2, lembra o diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa.

Regenera The AgriBiz

O conjunto de ações que fazem parte do conceito de agricultura regenerativa é o caminho para aumentar a quantidade de matéria-orgânica presente no solo e a qualidade da microbiota (conjunto de micro-organismos que decompõem os resíduos vegetais liberando nutrientes para si e para as plantas).

“Esta atividade microbiana contribui para a agregação do solo [junção de partículas minerais e orgânicas], para aumentar a porosidade, a aeração e a retenção de água”, diz Pillon. Tudo isso cria um ambiente que mantém a temperatura do solo mais amena, contribuindo para a resiliência climática.

“Da saúde do solo provém saúde das plantas e – consequentemente – influenciam na saúde dos animais que se alimentam dessas plantas, assim como o próprio homem. Além da fragilidade dos solos tropicais com relação a composição química, que por vezes traduz-se em deficiências nutricionais para as plantas e animais –, o empobrecimento microbiano dos solos pode intensificar determinantemente as relações de proteção contra contaminantes e prejudicar a saúde de toda cadeia envolvida”, explicou o Comitê Permanente de Saúde Única da Embrapa.

Um artigo científico da Nature enumera mais de 40 funções do microbioma do solo que contribuem direta ou indiretamente para a saúde das plantas, dos animais e dos homens.

No texto, os autores enfatizam a influência das comunidades microbianas do solo na ciclagem de nutrientes, na dinâmica da matéria orgânica, na estrutura, bem como na fixação e estabilidade de carbono no solo.

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No entanto, a intensificação do uso da terra, urbanização e simplificação das paisagens causam homogeneização, reduzindo a quantidade de micro-organismos que funcionam como um exército do bem, protegendo as plantas contra a invasão de agentes patógenos.

Ao longo de décadas, o melhoramento genético de plantas priorizou a seleção de características como porte e produtividade. Mas pesquisas recentes evidenciam que plantas ancestrais tinham maior relação com a microbiota do solo, recrutando micro-organismos que ajudam na defesa da planta contra doenças, pragas e estresse hídrico.

“Isso inclusive é uma nova fronteira para os programas de melhoramento genético, revisitar os materiais antigos e trazer esta relação com o microbioma de volta à cena”, diz Rodrigo Mendes, pesquisador da Embrapa Meio Ambiente.

Goiás terá centro de pesquisa

O Governo de Goiás aprovou a criação do 1º Centro de Pesquisa em Saúde Única do Estado, que deve começar a funcionar no próximo semestre. O local reunirá pesquisadores de múltiplas áreas para tratar temas conectados.

A engenheira agrônoma e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), Virgínia Damin, estuda os impactos dos agrotóxicos, sobretudo herbicidas, no solo. “O foco da minha pesquisa é mostrar que a dose de bula destes agroquímicos, em muitos solos, está errada. Seria possível usar 1/4 ou 1/8 dependendo de como a molécula interage no solo”, explica a professora.

Já outra professora da universidade estuda as consequências dos agrotóxicos na saúde do trabalhador rural que não utiliza Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) na aplicação. Outro professor utiliza a tecnologia de drones para mapear os focos de nematoides no solo. Assim, o produtor faz uma aplicação apenas nos pontos em que o verme está presente.

Há ainda cientistas que trabalham desenvolvendo bioinsumos. “A importância de um centro como este é que as informações não ficam pulverizadas, mas disponíveis no mesmo lugar”, finaliza Virgínia Damin.

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Os questionamentos desta reportagem foram respondidos coletivamente pelos seguintes membros do Comitê Permanente de Saúde Única da Embrapa: 1) Aiesca Oliveira Pellegrin – Embrapa Pantanal; 2) Janice Zanella – Embrapa Suínos e Aves; 3) Milton Kanashiro – Embrapa Amazônia Oriental; 4) Alessandro Guimarães – Embrapa Gado de Leite; 6) Maria do Socorro Bastos – Embrapa Agroindústria Tropical; 6) Amauri Rosenthal – Embrapa Agroindústria de Alimentos.